terça-feira, 15 de janeiro de 2008

Apocalipsa

Bom dia, meu amor.

Espero que tenha dormido bem. Os últimos dias foram bem frenéticos e, eu não vou mentir pra você, as coisas prometem ficar cada vez mais complicadas daqui pra frente.
Eu vou te contar o que aconteceu do jeito que eu lembro. Sente-se, fique a vontade. Vou tentar falar devagar pra você digerir toda essa informação.

Em 2015 houve o Primeiro Apocalipse, lembra dele? Quando aquela erupção colossal no fundo do oceano criou tsunamis gigantescos. Ninguém esperava por isso. Achavam que o fim viria com um meteoro, uma guerra ou o aquecimento global. Achavam que viria de cima, não de baixo. Ninguém previu as ondas gigantes. Devastaram o mundo todo...
As placas tectônicas se deformaram completamente, toda a geografia do planeta foi modificada. Se antes a água ocupava dois terços da superfície terrestre, agora devem ser uns nove décimos. Coincidência ou não, diz-se que pelo menos 90% da população humana foi dizimada. Mas nada disso se trata de um dado concreto, é claro. Ninguém tem certeza de nada. Como teriam?

E a radiação... Todas aquelas usinas sendo destruídas. Tanta coisa embaixo d’água, tanta coisa no ar. O pouco que sobrou está em pedaços. Os animais e as plantas estão completamente desajustados até hoje. O equilíbrio já era.

Só sobrou o caos.

Mas eles não pararam com isso. Não... Os humanos, apesar de tão frágeis, conseguem ser incrivelmente insistentes. Eles tem algo que faz eles se agarrarem a vida com unhas e dentes, sabe... Medo, talvez?

As antigas fronteiras já eram. Milhões de dados foram destruídos. Velhos sistemas, hábitos e burocracias já não existem mais. Nem faria sentido...
Agora existem novas terras com novas regras, novas ideologias. Novas personalidades estão se erguendo da fumaça. Novos... Heróis. Por que não? Novos heróis.

Eles juntaram o que puderam da tecnologia, mas isso não representa muita coisa. Muitas sabedorias antigas foram resgatadas agora. Estão usando navios a vela, lampiões, livros... O novo e o velho se misturaram de repente. Velhos preconceitos e medos morreram. São superficiais demais, eles darão espaço pra versões mais atualizadas.

As grandes massas não mandam mais. Com o fim da mídia instantânea, cada um tem o direito de acreditar no que quiser. Abalados pela destruição, ninguém tem como provar muita coisa. Eles se agarraram em qualquer coisa que pudesse lhes dar mais esperança. Velhas religiões, velhas crenças, velhos folclores... Velhas magias.

Magia.

Dizem que ela funciona, mas são só histórias por enquanto. Agora eles acreditam nela, e ela acredita neles. Como sempre, eles temem e respeitam o desconhecido. E o desconhecido é muito mais abrangente nos dias de hoje. As coisas não são mais tão... óbvias.

E, nessa nova fase da humanidade, de abertura para novas crenças e conhecimentos, histórias brotaram por toda parte. Lendas. Contos sobre novas criaturas no mar profundo, ilhas estranhas, seres místicos que sempre estiveram ali, mas até então jamais haviam se atrevido a viver ao ar livre.

Entre essas lendas, a que mais repercutiu e talvez a mais importante é a de Apocalipsa. Um tesouro ancestral com a capacidade destrutiva de varrer o mundo. Dizem que ele existe desde o início dos tempos, e que estava secretamente sob guarda de um grupo desconhecido de humanos que o prendiam a sete chaves. Aparentemente para impedir que chegasse em mãos erradas...

Mas, com o fim, esses humanos sumiram. Tragados pelo mar como quase todo mundo, provavelmente. Há quem diga que o Primeiro Apocalipse em si foi causado por eles próprios. O tesouro, contudo, permanece intacto. Perdido, sem dono, em algum lugar dessa nova e selvagem Terra.
Dizem que quem conseguir encontrá-lo será o novo governador da humanidade. Alguém com poder o bastante para fazer curvar-se todo o resto da raça humana e, quem sabe, até mesmo as outras...

É... Muita coisa aconteceu. E esse é só o começo, uma introdução pra que você entenda melhor as histórias que eu vou te apresentar. Histórias sobre pessoas corajosas, que abriram mão do medo e se jogaram de cabeça no desconhecido. Pessoas que não são necessariamente boas nem ruins, mas que, assim como eu e você, possuem seus próprios objetivos e suas próprias visões de mundo. E elas lutam por esses objetivos. Lutam com uma paixão que você só vê em cenários catastróficos como esse, do tipo que empurram um ser humano até o seu limite.

Mas não se assuste com nada disso, por favor. Pra começar algo novo, outra coisa tem que terminar. É triste, eu sei, mas é assim que é. Não tem muito o que a gente possa fazer pelo que já passou. Lembre-se, querida...

… Esse é só o começo...



Há quem reclame de problemas, há quem resolva problemas...

e há quem reclame e resolva ao mesmo tempo.
Capitão Francis Franco era uma dessas pessoas.
Francis, ou Fran, ouviu falar de Apocalipsa. Também ouviu falar que o reino de Januário enviou um navio da Marinha para encontrá-lo. Mas Fran não achava que algo tão supremo devesse ser usado por um governo para comandar os outros. Fran sempre teve uma forte ligação com a religião, e portanto acreditava que os homens não tinham o direito de agir como deuses entre eles. Já que ninguém faria nada a respeito, ela tinha que fazer alguma coisa.

O quê?

Oh, sim... “Ela”. Eu disse “ela”...

- Capitão Franco! - Gritou a primeira imediata, invadindo a cabine do capitão de supetão e dando um susto em Fran.
- Porra, Val! Eu já falei pra parar de me chamar assim. É capitã, cara. - Disse a capitão, ajeitando a postura em sua cadeira.
- Nada a ver, Fran. O certo é capitão, não existe um jeito feminino de chamar. - Explicou a primeira imediata Val Valeska, com um tom debochado.
- Tá, mas é o meu navio e sou eu quem decide, caramba! - Ela falou como se estivesse brava, mas estava rindo ao mesmo tempo.

Val também riu. Elas sempre se deram muito bem, levando as coisas nesse clima jovial e encarando os problemas juntas.

Capitão Fran era uma negra belíssima, de olhos finos e muito magra. Ela já foi modelo nos tempos do mundo velho, antes do Apocalipse. Tinha boa fisionomia pro trabalho. Seus cabelos encaracolados eram bastante volumosos e eram sempre bem cuidados, na medida que ela conseguia cuidar deles em uma velha nau. Ela se vestia como uma capitã pirata digna. Roupas de pano com cores fortes, uma bandana vermelha detalhada em branco, calças coladas, botinas pretas, jóias. Quando a situação estava calma, ela se apresentava para seus tripulantes com uma bengala de detalhes em ouro. “O estilo estimula o respeito”, ela dizia.

A primeira imediata Val era o oposto de Fran em quase tudo. Onde Fran era delicada e fresca, Val era vigorosa e debochada. Ela era branca, de um belo rosto e um sorriso de uma sinceridade encantadora. Mais rechonchuda, mas não gorda. Até porque era uma pessoa atlética, boa de briga. Val fazia o tipo que podemos chamar de ossos largos, apenas. Como primeira imediata, ela usava de seu carisma pra manter a tripulação unida e fazia boa parte do serviço pesado de confiança. Com uma camiseta que lhe deixava mais a vontade e uma flanela a disposição no cinto, Val estava sempre pronta para o trabalho. Mas não se engane, isso não era motivo para ela não manter a feminilidade. Seu cabelo quase sempre preso, com uma mecha rebelde que ela tinha que guardar atrás da orelha, lhe dava um ar de certo refino. Um charme a parte.

As duas, mais a segunda imediata, eram três amigas que viviam no mesmo apartamento até o Primeiro Apocalipse. Com toda a catástrofe, a destruição e o novo estilo de vida, elas acabaram tendo que se separar. Naquele momento, cinco anos depois, estavam reunidas de novo. Fran comprou um navio, o “O Perseguidor”, e juntou uma tripulação ilegal, partindo do porto de Januário para vencer a corrida contra o navio da Marinha “S.S. Lovemaster” que foi enviado para encontrar e adquirir o tesouro Apocalipsa.

O objetivo da capitão Fran era simples. Ela estava determinada a encontrar o tesouro e destruí-lo de uma vez por todas. Ela não gostava de imaginar o que aconteceria se Januário conseguisse aquilo, e muito menos se outro governo conseguisse. O homem ainda não estava pronto para um poder como esse. Aliás, em suas próprias palavras, “não tem motivo nenhum pra isso existir, cara. Mas que merda!”

A partir de atos ilegais (nos limites do que a fraca lei atual consegue influenciar), a tripulação do O Perseguidor juntou mantimentos e armamentos e partiu para o alto-mar. Não havia uma direção exata para seguirem, até porque eles não possuíam qualquer pista da localização do Apocalipsa. Mas elas tinham a rota de viagem de seu rival, o S.S. Lovemaster, e esse era um ótima ponto de partida.

Fran não se orgulhava das coisas que teve que fazer, mas seu consolo era saber que estava na linha de frente da luta por uma causa que iria salvar a humanidade de um novo fim, que talvez pudesse ser o definitivo. Ela era uma capitão pirata agora, e sua tripulação comandada por amigas de confiança e habilidade era fiel a seus comandos até o fim. E, se era pra ser assim, então ela seria a maior capitão que esse mundo novo já viu. Um dia, quem sabe, entraria pra história.

- Avistamos uma ilha, Fran. - Continuou a primeira imediata Val. - O Lovemaster vai aportar lá, é quase certeza.
- Ótimo. - Disse Fran, decidida. - Tentem não levantar suspeita, vamos aportar longe deles.
- Ok. Posso dar a ordem?
- Sim, por favor.

Val saiu da cabine, deixando Fran sozinha com seus pensamentos.
Agora era pra valer, ela ia lidar com marinheiros de verdade. Gente com armamento pesado, um juramento de lealdade e uma recompensa gorda esperando na volta da viagem. Fran se perguntou até que ponto estava disposta a deixar que sua tripulação desse a vida pela causa...

Saindo para o deque, Val teve que fechar os olhos por um instante até se acostumar com a claridade. O céu estava limpo, e o Sol a pico. Esse seria um longo dia, sem dúvida...

- Ai gente, eu não aguento esse Sol. - Disse uma voz vinda de cima, que aparentemente falava sozinha.

No alto do mastro, na cesta de observação (cujo nome original é caralho, o que deu origem a uma série de expressões pejorativas), uma bela loira se apoiava limpando o suor da testa.

- Pronto, Alana. Voltei. - Disse Val, escalando a rede para alcançá-la lá em cima.
- Ai cara, por que justo eu tenho que ficar aqui em cima? - Ela reclamou com a voz arrastada, como quem já estava sofrendo há horas.
- Alana, eu te deixei aqui rapidinho enquanto ia falar com a Fran. Você não ficou nem cinco minutos! - Val lhe disse, rindo de seu drama. Geralmente ela não teria tanta paciência para as dramatizações da segunda imediata Alana, mas naquele dia ela estava de bom humor.
- Ai... Mas é difícil pra mim, cara! Eu tenho alergia, esse Sol me deixa toda manchada. Olha isso! Ai, cara... - Ela mostrou o antebraço, que estava branco como todo o resto do corpo e, na claridade, definitivamente não demonstrava qualquer diferença.
- Tô vendo, Alana... - Mentiu Val, logo desviando o olhar. Talvez tivesse mesmo alguma mancha minúscula ali, mas nada que realmente desse pra notar. Além do mais, agora ela tinha preocupações mais importantes. - Me passa a luneta. - Ela pediu.
- Ai, toma. Eu vou descer, não aguento mais ficar aqui em cima.
- Ok, Alana. Obrigada, viu?
- De nada...

O agradecimento foi sincero. Val sabia que, para a segunda imediata, aquele havia sido um terrível sacrifício. Apesar das frescuras sem precedentes, ela as vezes fazia esses esforços pelo grupo. No fundo, era uma boa menina.

Lembra que eu falei que existem pessoas que resolvem problemas e pessoas que reclamam deles? Então. Se a Val estava no primeiro grupo, a Alana sem sombra de dúvida entrava no segundo.

Ela era magra, branca, loira, muito bonita, muito bem vestida. A aparência de dondoca era um reflexo direto da personalidade. O mundo, na visão de pessoas como a doce Alana, é um lugar mais terrível que o sétimo círculo do inferno. Não havia absolutamente nada que escapasse de suas constantes reclamações. A despeito disso, ela era uma companhia muito agradável se você tomasse um tempo pra conhecê-la melhor. Ela tinha esse defeito, é verdade. Mas todos nós temos os nossos.

Como segunda imediata, seu papel na nau era... Bom, até hoje eu não sei ao certo. Mas, por bem ou por mal, ela sempre quebrou um galho quando necessário.

Descendo pela rede do mastro, ela se dirigia até a cozinha para ver se sobrou alguma coisa do almoço.

Val observava pela luneta o S.S. Lovemaster. Ela sempre tinha um calafrio na espinha quando via aquele monstro de longe. Era um navio de guerra movido a vapor, com dezenas de canhões e toneladas de aço e ferro. Em um embate direto, o pobre O Perseguidor jamais teria uma chance. A tripulação de marinheiros aparentemente estava preparando-se para aportar. Eles paravam próximos da praia rasa, jogando a gigantesca âncora ao fundo.

- Alana! - Val interrompia a segunda imediata a caminho da cozinha. - Vamos desviar pelo leste, tem uma outra praia ali! Afastem-se daqui a toda velocidade! - Ela ditou a ordem, vigorosa.
- Quê? - Perguntou Alana, sem tanto vigor.
- Desviar pelo leste! Afastar a toda velocidade!
- Ah... Ok. - E então, repassando para o pirata mais próximo, ela deu a largada para a gritaria. - Desviar pelo leste. Afastar a toda velocidade.

- DESVIAR PELO LESTE! - Gritaram uns aos outros, conforme iniciava a correria para virar as velas. - DESVIAR PELO LESTE! TODA VELOCIDADE!

O Perseguidor podia não ser grande, ele podia não ser a vapor, mas ele era leve e rápido, dando razão ao seu nome. Desde que saíram do porto de Januário, ele não perdeu o S.S. Lovemaster de vista sequer um segundo.
E agora, estavam ali, naquela ilha tropical.

Fran, no deque observando a ilha que iriam atracar, se perguntava o que diabos os marinheiros vieram fazer ali. Será que o Apocalipsa estava tão perto? Foram apenas duas semanas de viagem...

Não, devia ter alguma coisa importante para ser feita antes. Um tesouro desses não é tão simples de se capturar. Não é só desenterrar e ir embora. Seja como for, ela iria descobrir. E ela iria chegar primeiro.

Ou ao menos eram essas suas intenções.





Capitão Francis Franco e segunda imediata Alana, d'O Perseguidor






Primeira imediata Val Valeska, d'O Perseguidor




- Afunde aquela nau, tenente-capitão. Não deixe prisioneiros.
- disse a voz autoritária do outro lado do rádio.
- Entendido, almirante. - Respondeu o tenente-capitão Xande Xandão, do S.S. Lovemaster. - Câmbio.
- Câmbio, desligo. - Decretou o almirante, terminando a ligação.

Levantando da poltrona, Xande Xandão pendurou o microfone do rádio no suporte da parede.

- Tá bom que eu vou afundar a nau... - Ele resmungou sozinho, ironizando a ordem que acabou de receber. - Espera sentado.

Ele saiu da cabine de comunicação, e não precisou fechar os olhos devido ao Sol. Isso porque tinha um quepe da marinha muito estiloso.

- Primeiro-tenente, tô gato? - Ajeitando o quepe, ele brincou com a primeiro-tenente Raquel, que o aguardava ao lado da porta.
- Haha! Como sempre, capitão. - Ela respondeu. Não como uma subordinada que puxa o saco, mas como uma amiga incentivadora.
- É. Eu sei.

Xande Xandão era um rapaz franzino, magro, de olhar calmo e pele branca que na verdade estava sempre rosada, queimada pelo Sol. Apesar da aparência inofensiva, ele tinha uma personalidade forte. Digna de um homem. Sempre confiante, galanteador. Sempre reclamando do que não está bom o bastante para seus altos parâmetros. Foi essa personalidade que o fez subir de cargo tão rápido. Isso e os contatos certos, é claro.

Em apenas cinco anos, ele subiu até o posto de tenente-capitão, e agora possuía a patente mais alta deste navio de guerra, com duas centenas de homens e mulheres treinados às suas ordens.

- E a nau que vinha perseguindo a gente, primeiro-tenente? Onde está? - Ele perguntou, conforme caminhava pelo enorme deque de metal cercado de marinheiros trabalhando. Eles estavam na rotina básica de atraque, aportando o navio para o desembarque.
- Tudo conforme esperado, capitão. - A pequena garota respondeu, caminhando a seu lado com passos apressados. - Eles estão desviando pelo leste. Provavelmente vão aportar na outra praia.
- Ótimo.

Depois de caminharem por mais alguns metros, chegaram ao extremo da popa do navio, onde estava um marinheiro uniformizado de alta patente. Ele estava observando o horizonte com um binóculo.

- Capitão! - Disse ele, prestando continência quando Xandão se aproximava.
- Descansar. Conseguiu ver a nau, Flávio?
- Sim senhor. - Respondeu Flávio, com o binóculo, acompanhando a nau com a vista. - Eles tão indo pro leste mesmo...
- Eu falei, não falei? - Disse Raquel.

Flávio e Raquel eram membros particularmente especiais da frota do tentente-capitão Xande Xandão. Ela, baixinha, negra, prestativa, empenhada. Ele, alto, branco, de cabelo castanho-claro com um pequeno topete, igualmente empenhado. A inteligência de um só podia ser comparada com a do outro. Suas habilidades e raciocínio eram de grande valia para o navio, e Xandão tinha a certeza de mantê-los sempre por perto. As vezes eles discordavam, mas em geral tendiam a chegar na melhor conclusão quando trabalhavam juntos.

Flávio sabia que estavam sendo seguidos desde o terceiro dia de viagem. Quando a nau se afastou, alguns acharam que ela ia seguir seu próprio caminho, mas ele sabia que ela estava apenas aproveitando as correntes de vento para continuar acompanhando o S.S. Lovemaster. A ideia de despistá-la nessa ilha foi dele.
Raquel, por sua vez, foi quem preveu a reação da nau. Ela imaginou que ela atracaria na praia mais distante da ilha, à leste, tentando despistar-lhes. Essa era a chance para que eles continuassem a viagem.

- Você sabe o que eles querem com a gente, tenente-capitão? - Perguntou Flávio, descendo os binóculos.
- Sei, sim. - Respondeu Xandão, revelando que andou fazendo a lição de casa. - Aquele é o O Perseguidor. Eles querem o Apocalipsa. Mas, se tão se arriscando a seguir a gente assim, é porque eles não tem nenhuma pista. Agora prestem atenção... - Ele continuou. - Eu recebi ordens expressas de afundá-lo. Mas não vejo necessidade disso, não somos assassinos. Estou confiando em vocês. Nós vamos despistá-los, assim eles não vão ter nenhuma pista pra continuar a viagem, e isso vai ser o bastante pra não incomodarem mais. Eu mesmo vou contatar o Almirante e informar que a nau foi abatida.

Era estranho o capitão ter tantas informações sobre aquela nau até então desconhecida, mas não houveram indagações. Além disso, sua ordem não-oficial era uma afronta direta ao juramento de obediência, e poderia haver sérios problemas para todos caso descobrissem a farsa.

Após um segundo de silêncio, os dois subordinados responderam quase em uníssono:

- Sim senhor, senhor.
- Ótimo. Agora dêem o comando para zarpar. Eles já sumiram da vista. Quando descobrirem que nós fomos embora, já vai ser tarde demais.
- Sim senhor. - Disse Flávio, afastando-se para fazer cumprir a ordem.

Os marinheiros ficaram confusos quando foram ordenados a interromper o procedimento de desembarque e iniciar imediatamente o procedimento de partida, mas obedeceram sem questionar. Em alguns minutos o S.S. Lovemaster deixaria esta ilha na qual mal aportou.

- Você tem certeza que a ilha é segura, Xande? - Perguntou Raquel, apoiando-se na grade da beirada do navio.
- Sim, sim. Ela já foi explorada antes, está no mapa. Nós ainda não entramos no perímetro marinho inexplorado, então tudo por aqui é seguro.
- Ok. Se você diz, então tá bom. - Ela aceitou, endireitando-se e afastando-se do tenente-capitão.

Deixado sozinho, Xande então foi até a sua cabine pessoal. Ela era muito mais luxuosa do que a cabine da capitão Fran no O Perseguidor. Havia uma bela decoração, uma escrivaninha grande, uma visão ampla do mar e até um microfone conectado a altos-falantes por todo o navio, para avisos gerais.

Ele tirou a pesada e imponente farda, revelando seu porte magro, e pendurou sua espada na parede. Mas ele não foi ali pra relaxar.

Primeiro Xandão envolveu sua mão com um pano. Então, abaixando-se atrás da escrivaninha, ele abriu uma gaveta e pegou uma curiosa garrafa de vidro. O conteúdo estava completamente congelado, e uma névoa branca ali dentro impedia que ele visse qualquer coisa.
Jogando-se sobre a poltrona, ele encarou a garrafa por longos momentos. De acordo com as instruções que recebeu, era aquilo que o levaria para o Apocalipsa. E ele já tinha uma vaga ideia do que faria a seguir.

O tenente-capitão era um homem cheio de mistérios.

Enquanto isso, na ilha tropical, piratas desciam do navio para a areia da praia, sacando suas espadas e pistolas e esperando pelas ordens da capitão. Eles estavam animados. É sempre bom partir para ação depois de um longo tempo de viagem tranquila. O que nem eles, nem o tenente-capitão do S.S. Lovemaster sabia, é que alguns daqueles homens jamais sairiam vivos de lá.



Tenente-capitão Xande Xandão, do S.S. Lovemaster



Segundo-tenente Flávio e primeiro-tenente Raquel, do S.S. Lovemaster



Eles não estavam preparados.
Sabe o que mais fez falta para os humanos depois do Primeiro Apocalipse? A Medicina.

Eles regrediram muito nesse sentido. Toneladas e mais toneladas de remédios foram levadas pelas águas. Uma simples febre poderia significar o fim agora. Apenas cinco anos depois eles ainda não haviam percebido isso, mas a expectativa de vida havia reduzido.

E reduziu muito.

- O que tá acontecendo com ele?! - Em choque, gritou a capitão Fran enquanto tinha em seus braços um de seus homens completamente alucinado.

Eles eram uma expedição de apenas oito. Estavam no meio da mata quente e fechada, forçando uma trilha com seus facões e espadas, quando o homem repentinamente caiu no chão. O pirata estava fervendo. Sua pele, pálida. Ele olhava para cima e tremia enquanto balbuciava palavras incompreensíveis.

- Capitão... - Ele tentava articular, em meio a baba convulsiva que insistia em escapar por sua boca. - Nós trou... Nós trouxemos... a morte... de cima...

Antes de perder a consciência, o homem apontava pra cima. De início a capitão pensou tratar-se apenas de uma alucinação qualquer, mas ela logo entenderia.

- Fran! - Alerta a primeira imediata Val. - Ali!

E pronto. Ao olhar pra cima, ela entendeu.

Uma enxame de insetos. Como várias nuvens negras vazando por entre as folhagens das copas das árvores, centenas de pequenos mosquitos tomavam o espaço, chegando a tampar a pouca luz que conseguia penetrar na floresta densa. Sabe lá que tipos de doenças exóticas eles teriam para apresentar?

- Porra. - A capitão decretou com firmeza.

Com dois piratas mais fortes carregando o homem inconsciente, a expedição iniciou uma corrida desesperada para escapar dos insetos. Os mosquitos voavam baixo e, a cada picada, ofereciam uma chance de que sua vítima terminasse como o último homem caído.

Fran e Val, na frente, usavam facões pra cortar o matagal. Elas não podiam fazer muita coisa além de torcer para que todos conseguissem terminar a trilha vivos, mas estas já eram esperanças fúteis a esse ponto.

Quando finalmente deixaram os insetos e a mata para trás, alcançando o espaço aberto no alto de um rochedo, a decepção foi tamanha que a capitão caiu de joelhos. Dali de cima, dava para ter uma vista da outra praia. E lá não havia nenhum navio de guerra gigante. Nenhum marinheiro, nada.
E então, juntando todo o seu fôlego...

- PUTA QUE PARIU!

No O Perseguidor atracado na praia, a segunda imediata completamente entediada notava os pássaros da floresta levantando vôo.

- Você ouviu isso? - Ela perguntou para um pirata que passava chupando uma laranja.
- Ein? Não, não ouvi nada. - Ele respondeu, e então continuou seu caminho.
- Estranho... - Ela resmungou, então, apoiando-se sobre os braços cruzados. - Ficar aqui sem nada pra fazer tá me deixando maluca, deve ser isso...

Ela se perguntava de novo por quê não podia ir junto com a expedição. Ela era “a única tripulante de confiança para cuidar do navio”, de acordo com a Fran. Ela devia “esperar ali para que fossem espionar o S.S. Lovemaster e voltassem”.

Ora, mas Alana não queria se sentir inútil. Já não bastasse ser a segunda imediata e ser usada como quebra-galho o tempo inteiro. Ela queria estar na ação, queria fazer a diferença.

E foi por isso que ela saiu do navio, deixando um pirata qualquer no comando interino. E por isso ela se embrenhou sozinha pela mata.

Enquanto isso, Fran estava contabilizando as perdas. Quatro homens haviam ficado pra trás durante a correria. Por mais que ela quisesse salvar todos, ela tinha plena consciência de que não poderia fazer nada por eles. Dos que restaram, parece que ninguém estava infectado. Todos tinham algumas picadas, é verdade, mas o importante é que não houvessem contraído alguma doença. E ela pensava no caminho de volta...

- Vem cá, – Ela chamava atenção de todos. - acho que é melhor a gente esperar até a noite pra voltar, o que é que cês acham?
- Como assim, Fran? - Disse a primeira imediata. - Talvez ainda dê pra alcançar o Lovemaster se a gente sair hoje.
- É, mas e esses mosquitos cara? Se eles pegaram quatro na ida, eles podem pegar quatro na volta. Daí a noite eles devem dormir... - Ela palpitou.
- É, mas de noite podem ter outros bichos mais perigosos ainda!

Os outros dois piratas apenas ouviam em silêncio. Em seus íntimos, eles acreditavam estar condenados de uma forma ou de outra. Afinal, seus nomes nem são citados na história. É claro que eles seriam os próximos a morrer. Ou ao menos era esse o pensamento que os preocupava.

Diante de um impasse de vida ou morte, com seu objetivo muito distante e o único que poderia levá-lo até lá se afastando cada vez mais, a capitão Fran só voltaria para a corrida pelo tesouro se desse muita sorte. O único modo de qualquer coisa dar certo pra ela seria se todas as probabilidades mais remotas de repente virassem a seu favor, como se o destino trabalhasse ao seu lado.

Bom, podemos dizer que foi isso que aconteceu.

- Capitão! - Interrompeu um dos piratas, de repente.

Quando Fran virou-se para ver, ficou atônita. Lá embaixo, andando na areia branca da praia, estava um velho homem completamente nu. Ele carregava um balde de madeira e caminhava sem pressa alguma. Parecia estar indo para o mar.

- ÔOOOOOO! - Ela tenta chamar sua atenção. - ÔOOO VOCÊ!
- Senhor, Fran! - Corrigiu Val.
- SENHOOOOOOR!

O homem a viu, e fez um breve aceno.

E então eles começaram a descer o rochedo. Vou me poupar dos detalhes, mas vale dizer que levaram bastante tempo e ralaram alguns cotovelos. Quando finalmente chegaram lá embaixo e pisaram na areia, Fran foi correndo até o homem. Ela acreditava que ele talvez fosse sua salvação agora. E era mesmo.

- Oi! Oi, senhor!
- Bonjour... - E ela não pôde deixar de notar que ele falava francês.
- O senhor é daqui? Conhece a ilha? - Ela tentava falar devagar, articulando bem.
- Oh, oui, oui! C’est ma maison. Je vis seule ici.
- Sei... - Ela fingiu que entendeu. - Vem cá, você sabe um caminho seguro pra chegar na outra praia? - Ela diz, apontando na direção Leste, onde está ancorado seu navio.
- L’autre plage? Seulement par voie maritime. Puis-je prêter mon radeau, mais comme je sais que ça va revenir?
- Como?
- Mi balsa! Para ir a la otra playa! - O senhor arriscava com espanhol.
- Isso, isso! - Fran começava a entender.
- Necesito de garantías! La balsa es importante para mí!
- Ah, tá! - E então ela finalmente entendeu. - Eles vão até o navio, daí eu fico aqui com você esperando até eles voltarem pra devolver seu barquinho. Pode ser?

Assim, em troca da companhia de uma jovem moça estrangeira, o velho homem nu emprestou sua preciosa jangada. Por mar o caminho seria tranquilo e rápido, ele garantiu, portanto ambos sentaram-se na praia para conversar até que Val e os dois piratas fossem buscar o navio.

A conversa lhe foi mais valiosa do que ela esperava. Aparentemente estavam na antiga Guiana Francesa, ou o que restou dela. E este homem era a população do país, ou o que restou dela. Sozinho aqui, ele não via necessidade de usar roupas, e agora era um só com a natureza.

Ele esteve ali desde o Apocalipse e só viu uma embarcação, três anos atrás, quando o reino de Januário fazia um novo mapeamento dos arredores. Eles tentaram trazê-lo com eles, mas ele não queria sair. Ali era sua terra, e era sua responsabilidade morrer com ela.

Entre um papo furado e outro, Fran acabou revelando-lhe que estava indo atrás do Apocalipsa. O senhor não demonstrou surpresa. Mesmo vivendo isolado dos outros humanos, ele também sabia desta lenda.

- Puesto que los seres humanos siempre están vinculados a la creación y destrucción, cada uno de nosotros sabe por instinto detalles acerca de esta leyenda. Y todos, desde el principio, sabíamos dónde estaba el tesoro Apocalipsa. Se escribe su dirección en todos los mapas. El principio y el fin están escritos en el destino de la humanidad, conectados con nosotros como nuestros brazos y piernas. Si es su destino, llegará a la Apocalipsa. - Ele disse.

Para Fran, toda essa história mais parecia a imaginação de um velho desocupado, mas ele ditava com muita firmeza conhecimentos a respeito de algo que ele não deveria sequer ter ouvido falar. Parecia que ao menos alguma coisa ali era real. O Apocalipsa está conectado à história dos humanos. Mais que isso, está conectado ao destino deles. Ela começou a pensar que, talvez, o seu destino de fato tenha sido esse desde o começo.

Convenhamos, cenários paradisíacos sempre nos permitem divagar um pouco.

Os devaneios da capitão terminaram quando ela viu o O Perseguidor surgindo por detrás da ilha. Era hora de partir. E agora, pela primeira vez, ela tinha uma pista.

- Fran. - Disse Valeska, conforme puxava a amiga para dentro da nau. - A Alana disse que queria falar com você. Parece que ela achou um negócio.

Após acenar para o velho francês, Fran ordenou que alguém descesse com a sua jangada e então foi para sua cabine conversar com a segunda imediata.

O que acontece é que a Guiana Francesa era uma das bases sul-americanas de lançamento espacial. Após o Apocalipse, abandonada em meio à devastação e já com vegetação rasteira crescendo ao redor, o Centro Espacial de Kourou agora parecia um grande museu de peças gigantes e foguetes nunca lançados. Em sua pequena aventura solo pela floresta, foi isso que Alana encontrou. E, na melhor das intenções, ela teve uma ideia...

- VOCÊ TÁ MALUCA? - Os piratas do deque ouviram a capitão gritar com a segunda imediata lá dentro.



O velho nu e a capitão Fran sentados na praia, esperando o O Perseguidor



- Isso aí não vai dar certo.
- Disse o marujo, esfregando o convés com um rodo e um balde.

O marujo Joe Luke sempre foi um rapaz que sabia das coisas. Com um jeito descontraído de ser, humilde e simpático, à primeira impressão ele podia dar a entender que não. Mas, na verdade, ele tinha uma ótima percepção de como os fatos desenrolavam. E, quando Luke dizia que uma coisa não iria dar certo, ela geralmente não dava. Geralmente ele utilizava isso apenas para se manter longe de problemas, poupando-se de se meter em confusões que pudessem estragar seu dia.


- Tenente-capitão! Os bolsões estão em um ritmo muito inconstante! - O segundo-tenente Flávio alertava pelo walkie-talkie.
- Prossiga com o procedimento, Flávio. - Insiste o tenente-capitão Xande Xandão, acompanhando o processo da beirada do deque.

Esfregando o convés, o marujo escutava e apenas resmungava para si mesmo:

- Tô falando...
- Ora, Luke... - Eu disse pra ele. - Por que você tem tanta certeza disso? - Eu também imaginava que não podia sair coisa boa dali, mas gostava de acompanhar as linhas de raciocínio daquele rapaz.
- Cara, desde quando localizaram essa região do oceano no radar, já sabiam que não era um bolsão vulcânico comum. Mesmo assim o capitão decidiu vir até aqui. Parece que ele quer descongelar alguma coisa... Até aí, tudo bem! - Ele analisa o ponto-de-vista do tenente-capitão. - Mas quando analisaram e viram que essas massas de água quente definitivamente NÃO ERAM um evento geológico comum, o melhor era a gente nem ter chegado perto. Mas não, ele decidiu parar o navio bem em cima. - Ele está claramente indignado com a teimosia do tenente-capitão. - Não, vem cá! Vem cá, coloca a mão aqui. Tá vendo? Quente pra caralho. O navio é de metal, cara. A gente tá em uma frigideira gigante!

Já faziam vários dias desde que driblamos o O Perseguidor naquela ilha. Até então não havia nem sinal dele no horizonte, parece que não seriam mais um problema.

E o Luke... Bom, ele tinha razão. Nós estávamos em um navio de metal parado em alto-mar sobre um estranho fenômeno. Correntes de água fervente vinham do fundo até a superfície de tempo em tempo. A princípio pensaram tratar-se de uma fissura tectônica no assoalho oceânico, mas o ritmo e a temperatura ali era muito maior. Tinha algo errado.

Você quer saber o que eu tava fazendo ali, né? Eu estava com os marujos do S.S. Lovemaster desde que ele zarpou. O uniforme me incomodava bastante, por isso eu sempre usava aberto. Tomei várias advertências dos tenentes por causa disso. Disso, da minha barbicha que eu insistia em manter e, principalmente, do Macaco. É claro que não eram permitidos animais a bordo, mas uma vez que já estávamos em alto-mar quando descobriram meu macaco, não havia muito o que fazer. Eles não iriam matá-lo à sangue frio. E, se tentassem, teriam que passar por cima de mim primeiro.

Desde o começo me dei bem com o marujo Joe Luke. Nós divídiamos turnos na limpeza do convés. Gostava de sentar e conversar com ele enquanto não era minha vez.

- Mas, mudando de assunto... - Continuou Luke. - E esse macaco, ein? Eu tô ligado que só deixam ele aqui porque descobriram tarde demais. Mas ele era seu desde o começo?
- Aham. - Disse eu, com o macaco sentado em meu ombro. - Ele nunca saiu do meu pé. Eu não tinha intenção de trazê-lo junto, mas também só percebi que ele veio quando já era tarde demais.
- Haha, entendi. E ele tem nome?
- Tem. Macaco.
- Tá certo... Bom nome.

Um estrondo seguido de um violento chacoalhar do navio interrompeu nossa conversa. Luke e o balde desceram rolando pelo convés conforme tudo inclinou perigosamente. Eu fui arremessado contra a parede do cockpit. Por reflexo, consegui segurar o macaco comigo.

Mas antes de te dizer o motivo desse estrondo, vou voltar um pouco no tempo. O tenente-capitão Xande Xandão, como você bem sabe, havia localizado esse local com o radar submarino térmico. Ele decidiu que era perfeito para tentar descongelar o conteúdo da garrafa. Coisa que, não importa o quanto ele tentasse, ele não havia conseguido até agora.

Ele já havia deixado-a em temperatura ambiente, já havia enrolado-a em cobertores, já havia mergulhado-a em uma panela de água fervente, mas nada era o suficiente. Estes estranhos bolsões de água do fundo oceânico, contudo, alcançavam a impressionante temperatura de 350 graus. Eram eventos rápidos, já que as massas de água só subiam de 15 em 15 minutos, e evaporavam instantaneamente em contato com a superfície.

Xandão não fazia ideia do que causava este fenômeno, mas não estava preocupado em descobrir. Ele iria apenas mergulhar a garrafa ali na hora certa e prosseguir viagem.

Apoiado na cerca da beirada do convés, ele observava conforme alguns marinheiros desciam a garrafa em uma corda de aço. Era uma operação delicada, já que o vidro não poderia rachar de maneira alguma. Para tal, ele deixou a primeiro-tenente Raquel supervisionando. Ela era perfeccionista e cuidadosa, perfeita para a situação.

A despeito dos constantes avisos do segundo-tenente Flávio a respeito da estranha alteração de ritmo dos bolsões ferventes, Xandão manteve a operação e esperava ansiosamente pelo próximo fenômeno. O segundo-tenente, preocupado, alertava-o constantemente que a temperatura estava subindo a cada nova ressurgência de água quente. Para ele, essa era uma notícia mais que bem-vinda.

Por fim, o próximo bolsão subia. Ele notava claramente a ondulação da água. Era uma massa de quase trezentos metros de raio subindo a uma velocidade considerável.

- Agora! - Ele dava a ordem.
- Ok, agora! - Raquel repassava para os marinheiros.

A garrafa, que já estava pendurada próxima da água, foi imersa. A água fervente subiu, esquentando novamente o ambiente e liberando uma profusão de espuma pela superfície.

E foi então que, pela primeira vez naquele dia, Xandão se assustou. Espuma? Droga, ele devia ter pensado nisso. Afinal, era um homem esclarecido. Se fosse apenas água quente, ela se manteria rente ao fundo do oceano, pois as massas quentes tendem a ficar por baixo das frias. Para que ela subisse, ela precisava ser empurrada por alguma outra coisa. Algo, inclusive, necessário para a formação daquela enorme quantidade de espuma...

Ar?

E, se aquele ar estava vindo do fundo do oceano, ele tinha que ter descido ali de algum jeito... Xandão começou a pensar nas possibilidades. Quando ele finalmente estava chegando a conclusão de que poderia ser algum outro tipo de gás, suas dúvidas foram sanadas e suas hipóteses explicadas.

Um estrondo seguido de um violento chacoalhar do navio interrompeu seus pensamentos. E agora, como pode ver, voltamos ao ponto em que eu era arremessado contra a parede do cockpit.

Emergindo da água à nossa frente, causando uma enorme onda que quase virou o navio,estava a maior criatura que eu vi até hoje. Um monstro marinho de proporções épicas, duas vezes maior que o S.S. Lovemaster, que estava vivendo naquela região à sabe lá quanto tempo.

Parecia uma espécie de mutação de uma baleia gigante. Para todos os efeitos era como uma, exceto pelo modo como ela esticava sua coluna para fora da água e, claro, pelas garras gigantes que arranhavam o casco do navio conforme ela tentava agarrá-lo. No fundo do oceano, talvez se alimentando, ela soltava ar regularmente. E, como é de se esperar, hora ou outra ela teria que subir à superfície.

A criatura devia ter um metabolismo extremamente acelerado, pois todo o seu corpo era quente. Não apenas quente, mas fervendo. Eu sentia o calor emanando apenas pela proximidade do monstro em relação ao navio. E as enormes quantias de água que ele respingava e espirrava eram quentes a ponto de fritar um humano vivo.

E foi isso que ele fez.

Inclinando sua enorme cabeça sobre o navio, o monstro escancarou sua bocarra grotesca e despejou uma enorme quantia de água fervente pelo convés. Eu vi homens gritando em desespero conforme sua carne completamente cozida despregava dos ossos e se espalhava pelo chão. Vi rostos desfigurados pelas queimaduras de terceiro grau e botinas derretendo e grudando ao chão pelo simples contato com a água escaldante.

Eu me pendurei como pude nas janelas do cockpit, de forma que aquela água que escorria pelo deque não me tocasse. Luke estava sobre um barco salva-vidas, protegido aproximadamente um metro acima do convés. Ele pegou um rifle e, acredito eu, foi o primeiro a começar a atirar no monstro.

- Formação de combate! Preencham os canhões de estibordo, comecem a manobrar IMEDIATAMENTE! - Gritava o chefe de artilharia, em meio à confusão. - Preciso de um voluntário corajoso pra metralhadora frontal!

De fato, um homem teria que ser muito corajoso ou muito imbecil para manusear a metralhadora frontal naquele momento. O maquinário ficava na ponta da proa, bem em frente ao monstro gigante e seu despejo de água fervente. Por outro lado, era um armamento de altíssimo calibre, e estava apontado exatamente para o ventre da criatura.

A baleia-aberração fechou a boca e, por alguns momentos, pareceu inchar. Como se por algum orifício ela estivesse absorvendo água para despejar novamente.

Os marinheiros sobreviventes no convés atiravam com seus rifles, mas o monstro gigante parecia não se incomodar com isso. Seria necessário apostar nos canhões, mas era impossível manobrar o navio enquanto aquelas garras gigantes o seguravam.

O tenente-capitão gritou por Raquel, mas ela estava ocupada demais socorrendo um ferido e tirando-o da zona de risco. Ele então correu pelo convés até o cabo de aço e começou a puxá-lo sozinho. Não é como se ele não se preocupasse com o que estava acontecendo com seus marujos, mas tudo isso seria em vão se eles perdessem a garrafa agora.

Eu fui até ele e o ajudei a puxar o cabo. Ele não sabia, mas aquilo também era importante pra mim.

Quando terminamos, foi notável o alívio em sua expressão ao ver que a garrafa estava intacta e, principalmente, descongelada. Não havia mais névoa ali. Maravilhados, nós observamos por um momento o conteúdo dela.

Mas não havia tempo para fascinação. Uma nova onda de água fervente descia correndo pelo convés, conforme o monstro tentava varrer toda a vida no navio. Pulamos para tomar cobertura, cada um para um lado. O Macaco gritava e esperneava irritado no meu braço. Criatura imbecil, esbravejava como se tivesse alguma chance contra aquela coisa...

Foi então que eu ouvi os tiros. Digo, é claro que eu já estava ouvindo tiros há algum tempo. Mas aqueles eram mais altos, mais insistentes, mais fortes. Alguém realmente havia pego a metralhadora frontal, afinal de contas. Mas quem?

O chefe de artilharia Daniel era um bom homem. Antes do Apocalipse, sempre foi esforçado em tudo o que fez. Casou-se, teve dois filhos, um emprego fixo. Depois, quando todo o seu esforço foi destruído pelas águas e parecia não haver mais esperança, ele juntou tudo e entrou para a marinha. Precisava de segurança para a família em tempos de crise.

Naquele momento, manuseando a enorme metralhadora frontal do navio e recheando o ventre do monstro-baleia de projéteis anti-tanque, ele sentia os respingos ferventes queimando sua pele. Ele sabia que era um ato suicída, mas alguém tinha que fazê-lo. Um por todos...

Finalmente demonstrando sinais de sentir dor, o monstro-baleia faz um triste e grave som de angústia, soltando o navio e recuando alguns metros. A água que escorria por sua grotesca boca agora caía descoordenada por toda parte. Daniel via seu fim vindo sobre sua cabeça em forma de uma grande massa d’água esfumaçante. Ele teria morrido.

Teria, não fosse pelo puxão de Flávio, tirando a maior parte de seu corpo da linha de perigo.

O navio finalmente aproveitava a chance para manobrar. Ele virou-se de lado para o monstro-baleia. Ao som de ensurdecedores estouros de disparo, uma chuva de balas de canhão perfurou seu corpo em um instante. A criatura urrou, sangrou e recuou novamente, mergulhando no oceano para nunca mais voltar.

O mar começou a estabilizar novamente. As enormes ondas causadas pela movimentação do monstro amansaram e cessaram. Os últimos filetes de vapor de água fervente ganharam os céus. A calmaria tomou conta.

Uma vitória, é verdade. Mas uma vitória triste. Corpos e feridos espalhados pelo convés manchado em sangue e água salgada. Choros baixinhos de dor eram ouvidos por toda parte. Os sobreviventes intactos e semi-intactos ajudavam seus companheiros como podiam. Os corpos eram cobertos por capas pretas.

Daniel, nos braços de Flávio, fazia uma forte careta de dor conforme tentava sentir seu braço direito. Mas ele não estava lá.

Os dois eram muito parecidos, exceto pelo fato de que o chefe de artilharia era mais baixo e troncudo que o segundo-tenente. Eles não possuíam qualquer relação familiar, mas suas feições faziam todos pensarem que eram irmãos. O fato de serem amigos e estarem sempre juntos sempre ajudou na confusão.

- Calma, cara. Respira. - Flávio tentava mantê-lo firme.
- Meu braço... O que aconteceu com o meu braço? - Daniel perguntou. Ele não queria olhar, não tinha coragem.
- Vai ficar tudo bem. - Flávio mentia.
- Me responde! O que aconteceu com o meu braço? - Ele vencia a dor para falar.
- O seu braço já era, cara... - Ele disse de uma vez. - Mas o importante é que você vai sobreviver. Vai dar tudo certo. - Ele mal acreditava nas próprias palavras.

A água escaldante levou o braço do chefe de artilharia como se não significasse nada. Sobrou apenas uma porção de osso dependurada em meio a restos de carne queimada.

Alguém chegou para ajudar. Trazê-lo para a enfermaria.

Enquanto isso, Xande Xandão entrava em sua cabine com a garrafa. Tive o impulso de pedir para entrar junto, mas me contive. Eu deixaria ele cuidar disso. Não queria chamar muita atenção.

Ele tirou a farda, pendurou a espada. Com calma, sentou-se atrás da escrivaninha e segurou a garrafa a frente de seu rosto. Ela não era mais gelada, então ele não precisou de um pano para manuseá-la dessa vez.

Ele encarava o conteúdo com serenidade. E, com a mesma serenidade, o conteúdo o encarava de volta.

Uma pequena fada, não maior que três centímetros, flutuava ali dentro. Ela era azulada, e suas asas transmitiam um constante e fraco brilho de mesma cor.

- Qual o seu nome, amiguinha? - Xande perguntou.

Não houve resposta. O nome é a coisa mais importante para uma fada, revelá-lo é como entregar a própria vida em uma bandeja. Já haviam alertado isso para o tenente-capitão. Ele só estava testando.

- Ah, não vai responder? Tudo bem, então eu escolho. Eu vou te chamar de Soneca.

Um apelido apropriado. A fada não conseguiu evitar uma expressão de espanto. Todo esse tempo, protegida de olhos curiosos pela névoa gélida da garrafa, ela hibernava tranquilamente. Mas, como esse homem sabia o que ela estava fazendo? Quem era ele?

- O que você quer? - Pela primeira vez, ela falou. Sua baixa voz, mesmo amplificada pelo eco da garrafa, só era ouvida pois a cabine estava em um silêncio sepulcral.
- Você sabe o que eu quero. - Disse o tenente-capitão. - Eu quero chegar no Apocalipsa.
- Eu não vou te levar lá. - A pequena criaturinha afirmou com vêemencia.
- Você tem que me levar lá. Senão você nunca vai sair dessa garrafa. - Xande não gostava disso, mas ele tinha que ameaçá-la para conseguir o que queria.

A fada se calou por alguns instantes.

- Você é ruim, humano. - Ela disse, por fim.

Xande não disse nada. A fada não o conhecia, ela não sabia nada sobre ele. Ele apenas guardou a garrafa e pegou sua farda, saindo da cabine em silêncio.

Do lado de fora, médicos e marinheiros socorriam os homens feridos em uma correria e gritaria generalizada. Não havia mais tempo para lamúrias, os homens corriam contra o tempo para salvar o maior número de marujos que fosse possível.

A primeiro-tenente Raquel aproximou-se apressada do tenente-capitão:

- Xandão, acho que você precisa ver isso. - Ela disse.

Concordando com a cabeça, Xande Xandão acompanhou-a até a beirada do deque.

- Ah, não... - Ele resmungou baixinho, embasbacado.

A primeiro-tenente ofereceu-lhe um binóculo, mas ele não precisava disso. Não, ele já havia reconhecido aquela nau à distância. Ele jamais havia visto uma embarcação viajar tão rápido, nem antes do Apocalipse.

Cortando o horizonte, o O Perseguidor ultrapassava o S.S. Lovemaster à uma velocidade inacreditável.



A baleia-monstro ataca o S.S. Lovemaster



Tenente-capitão Xande Xandão conversando com a fada Soneca



Macaco, o macaco


Francis Franco ainda não acreditava que aquilo realmente estava funcionando.

Segurando-se ao leme com todas as suas forças para não ser arremessada para fora do navio, ela via o S.S. Lovemaster sendo rapidamente deixado para trás. Sua incredulidade era tanta que ela teve que expressar-se verbalmente.

- Cacete! Eu quero dar um beijo na Alana! - Ela gritava, para que pudesse ser ouvida em meio à tanto barulho.
- Né?! - Gritou a primeira imediata, também segurando-se como podia no navio.

Elas levaram dias na ilha da antiga Guiana Francesa, com todos os piratas trabalhando duro por tempo integral até que tudo estivesse pronto para a partida. O tempo todo, Fran não tinha certeza se a ideia da segunda imediata Alana daria certo, mas ela não tinha nenhuma melhor.

Mas deu. E agora, com foguetes da antiga Nasa acoplados dos dois lados da nau, o O Perseguidor viajava rápido como um... Raios, viajava rápido como um foguete.

O som do vento que passava pelo navio, das águas sendo cortadas pela proa e das turbinas queimando combustível espacial era ensurdecedor. Ela mal podia ouvir os próprios pensamentos.

Mas elas não conseguiriam aquele combustível de novo, portanto estavam economizando. Para isso, o navio alternava periodicamente entre viagem a vela e “a jato”.

- Ok, desliguem os foguetes! - A capitão gritou para a tripulação.

As enormes turbinas começaram a parar, esfriando lentamente. O navio, ainda sob o grande impulso, continuava a cruzar os mares em alta velocidade. Levaria um tempo para que Fran mandasse arriar as velas. Se fizesse isso cedo demais, poderiam rasgar com a pressão.

Agora, com menos barulho, era possível conversar com mais calma:

- Você tem certeza que é pro Norte, Fran? - Perguntou a primeira imediata.
- Tem que ser, cara. Se não for, eu faço questão de voltar tudo isso pra encher aquele velhinho safado de porrada.

O homem disse que todos os mapas apontavam a direção do Apocalipsa. Ele só podia estar se referindo ao Polo Norte, já que as cartas costumam ter a direção Norte demarcada como referencial. O fato do S.S. Lovemaster também estar indo para aquele lado era apenas uma coincidência mas, para Fran, serviu como um indício de que estava na direção correta.

Com a mão em frente a boca, ela tossiu uma ou duas vezes. Em seguida, apressada, virou-se e foi em direção à sua cabine.

- Tá tudo bem, Fran?
- Tá sim. - Disse a capitão. - Já volto, cuida aí!
- Ok.

Entrando na cabine, ela rapidamente procurou um pano. Sua mão estava com muco ensanguentado. Ela já estava se sentindo febril ultimamente, mas disso pra tossir sangue?

Enquanto limpava a mão, Fran ficou preocupada. Ela provavelmente havia contraído algo dos insetos da ilha. Em seu íntimo, torceu para que fosse passageiro. Um pouco mais íntimo, ela sabia que não era.

Colocando a mão na testa, a capitão teve a ligeira impressão de que sua febre aumentou um pouco mais. Ela estava se fazendo de forte em frente aos seus tripulantes, incluindo as duas imediatas. Não queria que se preocupassem, nem que achassem que isso iria atrapalhar seus objetivos. Mas nos últimos dias isso estava se tornando cada vez mais difícil. Se manter muito tempo de pé lhe cansava demais. E logo iriam perceber que ela não estava comendo tanto quanto antes...

Fran bebeu um copo d´água e rezou para que o Apocalipsa estivesse próximo. E então, uma comoção lá fora chamou sua atenção.

Ela abriu a porta da cabine e colocou a cabeça para fora, tentando entender porquê estavam comemorando.

- Terra à vista, Capitão! - Gritava alguém. - Terra à vista!

E ali estava. Surgindo no horizonte, em meio à imensidão de azul, uma gigantesca ilha. Era como o pico de uma montanha erguendo-se para fora da água. De um lado, um declive bastante inclinado. Do outro, ela se dividia em cinco níveis, como os degraus de uma enorme escada. Cada um dos níveis parecia ter uma flora claramente diferenciada em cores e formatos, como se a mudança de altitude fosse o suficiente para que alterasse completamente o bioma local. O próprio céu era de um azul um pouco mais claro naquela área, como se a ilha estivesse envolta em uma aura diferenciada. Era lindo, confuso, bizarro e selvagem. O Apocalipsa tinha que estar lá. Ou ao menos eram essas as esperanças da capitão Francis Franco.

O sol já se punha enquanto o O Perseguidor aportava em uma praia esverdeada.

Enquanto isso, há vários e vários quilômetros de distância, o S.S. Lovemaster prosseguia navegando. O tenente-capitão Xande Xandão de tempo em tempo se recolhia à sua cabine para verificar a trajetória com sua informante secreta. Por mais de uma vez ele me encarou de longe com uma cara fechada. Era claro que ele esperava meu silêncio a respeito do nosso pequeno segredo azulado. E ele teria.

- Você ouviu falar? - Disse Luke pra mim. 

Dessa vez era ele quem estava sentado, e eu quem varria o convés. O Macaco não ajudava em nada, enfiando a cara no balde de água com sabão e derrubando-o mais de uma vez. Mas eu não me estressava, não é como se tivesse alguma pressa.

- Depende. O quê? - Eu perguntei.
- O braço do chefe de artilharia...
- É, ele perdeu no ataque do monstro-baleia. Eu cheguei a ver, tava feia a coisa.
- Não, não. Depois disso.
- O que houve depois disso?
- Disseram por aí que ontem a noite ele foi dormir e, hoje de manhã, acordou com o braço inteirinho.
- MAS EIN!? - Eu gritei. O Macaco se assustou e acabou derrubando o balde de novo.
- Pois é. O braço surgiu no lugar de repente. Ninguém consegue explicar, nem ele. Tem cara falando por aí que a nossa viagem é abençoada.
- Capaz... - Cínico, eu disse. - Somos só um monte de capachos indo buscar uma arma nova pro reino de Januário ameaçar os outros. Não tem nada de sagrado nisso, Luke.
- Uhm... - Luke se calou, finalizando o assunto. Eu sei que ele não achava a viagem sagrada, mas talvez no fundo quisesse acreditar nisso. Teria sido mais simples.

Deixei o assunto morrer e levei o balde vazio para encher de novo. Notei que o céu estava limpo e o mar, calmo. Teríamos um bom dia de viagem amanhã. Ótimo.

terça-feira, 1 de janeiro de 2008

Super World

Fase Demo
A build de Super Mario World

O governo brasileiro decidiu que, por questão de segurança nacional, era necessário criar um distrito paralelo com leis próprias e possivelmente auto-suficiente.
Tal decisão foi tomada após vários incidentes ao redor do país, mas a gota d’água foi um maior ainda envolvendo um homem pelado e um míssil nuclear.
Os nerds estavam fora de controle.
Era preciso exilá-los.

O governo estabeleceu que seria um lugar de nerds pra nerds. Nerds elegeriam nerds que regeriam a cidade, de forma a mantê-la aceitável a todas as castas. Desde os Otaku no Nerds aos Dark Nerds, passando pelos HQ Nerds, Nerd Nerds, e por aí vai.
E o que todos eles tem em comum? A afeição por jogos e a total indiferença (ou ódio) pela moda convencional.

Por aceitação geral, definiu-se que o nome da cidade seria Super Mario World. Com a parte do Mario riscado e tudo.
Foi eleito um prefeito do partido P.U.N.H.E.T.A. (cujo significado ninguém gosta de citar). Apesar das manias asquerosas que os Adeptos da Punheta não se preocupam em esconder, os nerds tiveram o bom senso de que esta era a casta mais neutra em relação as outras.

Seu nome era Matheus, mas a primeira coisa que ele fez como prefeito foi a criação do G.U.I.D.E. dos nerds (ou Guia Único de Ideologias Distintas Específicas dos nerds).
O Guide estabelecia que todo nerd tinha o direito de aderir seu nick como nome. E assim, Matheus passou a se chamar Galhards.
O Guide também mudava o nome do cargo de prefeito para administrador (ou adm), pois assim “todos os cidadãos se familiarizariam melhor com o governo”.
O Guide estabelecia como oficiais certas gírias in-game, in-fórum, in-MSN e in-virtual no geral utilizadas por tantos nerds.
O Guide diz que a cidade aceita imigrantes não nerds, contanto que eles venham com a Força do seu lado, e não contra.
O Guide também afirma que a Força está do lado de mulheres a partir de específico número de sutiã.
Aliás, a cidade está em falta de mulheres.

É verdade que elas não faltam no bairro da Libertação, onde vivem os otakus. Por algum motivo desconhecido, parece que existem muitas mulheres adeptas dessa área. Talvez seja devido aos bichinhos coloridos e as histórias homossexuais que geralmente surgem entre um mangá e outro.
Mas na cidade, em geral, faltam mulheres.
Dizem que existe um território paralelo e underground onde muitas mulheres nerds vivem. Diz-se que lá se encontra desde loiraças RPGistas mais gostosas e improváveis a marvel girls estonteantes com cosplays de Psylocke ou Feiticeira Escarlate. Dizem alguns que por lá se encontra até cosplay de Eva.
Mas essa é um caso que está sendo averiguado pelo Justiceiro do Deserto, um cara que só aparecerá no segundo capítulo.

Essa é a história de Super World, um lugar mágico... de fãs para fãs.

Primeira Fase
Um player insatisfeito

Era véspera de ano novo.
Verão, época em que faz um calor infernal em Super World e os hospitais da cidade ficam cheios de nerds sofrendo de insolação, dando um trabalho dobrado aos healers.
Nesta tarde em especial, fazia um incomensurável calor de vinte graus.
Três amigos conversavam no banco da Praça of the Witch-King, inaugurada em homenagem ao poderoso Witch-King, dominador de tralls das neves e vilão chave da saga da Sociedade do Anel.
Eram eles:

Mordok, cujo nome anterior foi Rafael.
Um dark nerd seguidor do metal, guitarrista e desenhista de mão cheia. Suas notas escolares foram estrondosas, indo contra todas as expectativas causadas por sua mente mais lenta que um private server novo.
Assim como a maioria dos habitantes da cidade, hoje ele está de preto novamente. O calor é grotesco, mas o orgulho é maior. Sua coluna em si é uma obra de arte por quase formar uma letra do alfabeto latim. Seus cabelos são da altura dos ombros e estão caídos pra frente tampando seu rosto, sendo que de perfil só se vê o seu pronunciado e épico nariz+7.
Ele tem uma banda, e sobrevive tocando em bares.

Delacrox, cujo nome anterior foi Murilo.
Cox já foi um dark nerd, mas hoje dedica seu tempo livre para aumentar sua experiência como otaku. Após descobrir que existiam mulheres no bairro da Libertação, ele imediatamente concluiu que deveria misturar-se com aquele povo de costumes invertidos se quisesse um dia perder a virgindade. Ele vai ser o último destes três a perdê-la, mas não sabe disso.
Suas camisas e blusas do metal agora estão no fundo do armário e foram trocadas por roupas mais polêmicas de cores mais vivas. Tudo pelas garotas.
Apesar disso, Cox também está morrendo de calor. Seu organismo é mais fraco que a maioria, pois ele é adepto da mais nova onda otaku, a “fotossíntese”. A fotossíntese é uma adaptação dos vegans, que seriam uma evolução dos vegetarianos. Vegans não só se abstém de carne, como também de qualquer coisa relacionada a carne. Eles não consumem ovos, leite, não utilizam couro nem nada do tipo. Decididos a poupar também as vidas dos pobres vegetais, os vegans criaram o método de fotossíntese.
Consiste em ficar parado ao Sol o máximo de tempo possível e sobreviver disso.
O método ainda está sendo avaliado.
Assim como Dok, Cox também possui um nariz deveras acentuado, mas seu cabelo é curto e pintado de azul.
Ele não precisa trabalhar, pois não come.

Marmota, cujo nome anterior foi Vinícius.
Marms não é um nerd. Ele afirma que não deveria estar aqui. Marms largou o Magic há meses, se nega a jogar qualquer jogo on-line e está até mais magro. Ele acha que o governo cometeu uma terrível injustiça com ele e pretende fazer de tudo pra sair desta cidade esquisita.
Marms arranjou um emprego como atendente do McDonalds.

- Eu não sou nerd, caralho! Eu não deveria estar aqui. Eu larguei o Magic há meses, vendi todas as minhas cartas! – Ele contestava para os seus amigos... de novo.
- Que eu me lembre, você tinha um monte de carta. – Disse Cox.
- É, o Gam falou que você era o traficante pessoal de Magic dele. – Disse Dok.
- Eu era, disse certo! Era! Cansei disso! Eu quero uma vida normal, com amigos normais! Nada contra vocês, mas essa cidade no geral é escrota! Tipo, eu não posso viver de jogo pro resto da vida!
- Só pra lembrar. O que você fez com o dinheiro das cartas mesmo? – Sagazmente perguntou Cox.
- Comprei livros...
- ... – E as reticências foram conjuntas.
- Mas porra, todo mundo compra livros!
- ... – De novo.
- Ah, vão se foder!

Revoltado, Marms vira as costas e vai embora em direção a sua casa.
É uma casa comum, num bairro periférico. Talvez a região mais normal da cidade. Pelo menos disso ele não pode reclamar.
No jardim, seu cachorro dorme. Antes de vir para Super World, ele tinha três cachorros. Freud, Zelda e Link. Depois de muito tempo, só Freud continuou vivo. O que é irônico, já que ele é o mais velho dos três.
Em frente a porta, um jornal está entregue. A notícia de capa é “Imperdível! Rate do server Delta de Perfect World estará dobrado durante a próxima semana!”. Ao lado, ele consegue enxergar outras notícias igualmente importantes. “Bug em Gunbound deixa nada menos que dez pessoas no ranking dragão azul!”, “PK lendário mata GM, pânico em Mu online!”

- Nerds imprestáveis...

Ele entra. A sala está uma bagunça. Várias caixas de papelão se espalham pelos cantos com os seus objetos pessoais. Disposto a sair dali o mais cedo possível, ele não desempacotou nada.
Por hora ele agradece por não poder ouvir o vizinho praticando. Ele deve estar em um bar por aí. O maldito tem uma bateria e toca até o horário de recolher. Aquele tal Guide dos nerds estabeleceu esse horário como duas da madrugada, “logo após a segunda WoE do dia.”
Ele sabia o que era WoE. “War of Emperium”. É um período de guerra pontual em um dos vários jogos on-line que a cidade sustenta. Ele já jogou isso, é do tal Ragnarok. Por um momento, Marms se pega lembrando de como era divertido asurar seus oponentes e vê-los tombar diante de um único e preciso golpe de punhos livres.

Ele pega seu uniforme e sai de casa. O McDonalds, seu local de trabalho, fica a quatro quadras dali, e ele já tinha extrapolado a tolerância obrigatória de trinta minutos de atraso.

Segunda Fase
Fight no bar

- Nossa, ele parecia estressado.
- Deixa que depois ele volta.
- Bom, falou então cara. Eu tenho que estar no Balaio agora.
- Falou, Dok! Eu vou ficar aqui mais um tempo, fazendo fotossíntese.
- Fotossíntese, sei...

Dok se despedia do seu amigo. Ele tinha que tocar no bar “O Balaio do Gato”, na região mais dark da cidade. É verdade que ainda eram vinte pras três da tarde, mas aqui em Super World há os que preferem curtir de dia e jogar a noite inteira. O Balaio do Gato entendeu isso, e por isso fazia sucesso como um dos poucos bares que tem shows a tarde.

Ele pega um táxi. Dok também não costuma jogar muita coisa, então os cartões de cash que ganhava junto com seu salário eram inúteis pra ele. Por sorte, táxis só aceitavam isso como pagamento. Ele podia dar-se a esse luxo.

- Sabe onde fica o Balaio do Gato?
- Indo tocar? – O tranqüilo taxista pergunta num sotaque muito caipira.
- Como você sabe!? – Dok fica surpreso.
- Percepção.
Ele nunca imaginaria que é por causa da guitarra que está carregando nas mãos.
O assunto não flui mais que isso. Nenhum dos dois é de muita conversa, o que acaba sendo incrivelmente confortável para ambos.

Dok entra no bar suando em bicas. Toda a banda já está posicionada no palco, só esperando por ele. Ele se ajeita também.
Hoje eles irão tocar o tema de Megaman, seguido de alguns outros igualmente nostálgicos e finalizando com estilo com uma versão própria de Pegasus Fantasy.
O baterista começa a contagem regressiva para a primeira música.
Tic
Tic
BAM
Todo o movimento do bar para com o impacto. Alguém explodiu a porta, e todos se viram para ver o que aconteceu.
É o Justiceiro do Deserto.
Diante da entrada chamuscada do bar, com seu manto pesado e remendado esvoaçando levemente ao vento, ele entra. Seu rosto é coberto pelo mesmo manto, como uma touca. Só é possível ver seus olhos, e muito mal.

Todo mundo conhece o Justiceiro do Deserto. Um nerd um pouco mais pancada que o normal resolveu se vestir com o cosplay de um personagem da sua imaginação e tocar o terror por aí.
Por toda a cidade ele já causou problemas, mas por alguma espécie de sorte sobre-humana e um pouco de agilidade, nunca foi pego pelos GMs.

Os GMs, por sua vez, são a polícia especial da cidade. GM é a sigla para “Gore Monster”, e eles tendem a cumprir com o seu nome. São brutamontes, dizem que são geneticamente modificados. Utilizam-se de violência e precisão absurda para realizar suas tarefas e manter a ordem. Dizem que todo GM tem permissão para matar, mas eles costumam fazer pior, muito pior.
Eles são responsáveis pela segurança e cumprimento da lei em todos os bairros da cidade, menos o da Libertação. Lá eles têm a própria polícia, os staffs. Os staffs são tão otakus quanto todo o resto do seu território, mas um pouco mais inúteis que a média. Nunca se ouviu falar de um staff fazendo aquela coisa que staffs deveriam fazer. Por isso a Libertação é o local mais caótico em toda Super World.

O Justiceiro caminha pré-potente em direção ao balcão, onde um furioso barman o encara com ódio.

- Eu sou o... – Com uma perna ele pisa sobre um banco, enquanto estica os braços na mesma direção como um tokusatsu heróico – JUSTICEIRO DO DESERTO!
- Não tem nenhum deserto por aqui, seu animal! – Esse é o primeiro fato que faz o barman ficar extremamente irritado com a presença do Justiceiro. Assim que resolver isso, ele pretende listar todos os outros, incluindo a destruição da porta do seu bar.
- Não se apegue a detalhes, barman. – E assim o astuto Justiceiro se esquiva de um longo sermão - Vim aqui, pois procuro esta pessoa. – E ele mostra uma foto ao barman.

Confuso, e ainda mais raivoso por ter tido sua porta explodida em vão, o barman nega conhecer a pessoa da foto.

BAM
BAM
BAM

Ao lado do anterior, mais três buracos são formados na parede frontal do bar por explosões brutais. São GMs.

Eles usam uniformes brancos e apertados, que deixam a brutal forma de seus genitais a mostra. Alguns dizem ser estiloso, outros afirmam que faz parte da intimidação.
Os três usam capacetes com visores vermelhos. O do meio, com um visor um pouco mais escuro e brutal que os outros, parece ser o líder.

- Você – E ele brutalmente aponta para o Justiceiro do Deserto – será banido por tempo indeterminado de todos os jogos que tenha uma conta, assim que descobrirmos sua identidade. Entre seus inúmeros delitos encontra-se destruição de propriedade, error abusing, KS, invasão de propriedade, furto, invasão seguida de destruição de propriedade, tentativa de...

Aproveitando-se do discurso, o Justiceiro habilmente saltou por sobre o balcão e abaixou-se ali, esperando que ninguém tenha visto isso. Por azar, ao fazer isso seu pesado manto esbarrou numa garrafa, derrubando-a e espalhando barulho e coca-cola pelo recinto.

- PEGUEM-NO!

Os três GMs correm brutalmente em direção ao Justiceiro em movimento linear contínuo brutal, ignorando qualquer móvel, pessoa ou parede no caminho. Por sorte, não tinha nenhuma.

Calculando que sua manobra evasiva falhou e os brutamontes estão vindo na sua direção, o Justiceiro habilmente salta por sobre o balcão, impulsionando-se na cabeça do líder e caindo atrás dos três.

Os GMs se viram e partem pra porrada. Com hábeis movimentos evasivos e muita sorte, o encapado se esquiva de todos os golpes, e até tenta revidar algumas vezes sem muita eficiência.

Dok, em cima do palco, a tudo assiste abismado. Ele já havia ouvido falar do Justiceiro do Deserto, mas não achou que fosse mesmo tão divertido.

- Ele é full agi!
- Com toda essa armor, ele nunca vai derrotar os GMs.
- Cara, eu nunca tinha visto uma coisa dessas na vida real!

São os comentários que ele ouve ao redor do bar.
Com seu pouco conhecimento em anime, Dok repara que o estilo daquele herói é diferente. Ele se usa de golpes sujos, sacanagem e ocultismo para brigar. Além disso, seus chutes lembram alguma arte marcial. Tae Kwon Do, talvez?
Animado pela aventura, e sentindo-se impotente por não ter feito nada ainda, ele pula no meio.

Rodando por sobre a própria cabeça e executando chutes aéreos tão rápidos e violentos que fariam voar o maxilar de alguém, o guitarrista assusta os GMs e protege o Justiceiro. Nerds costumam ser tão internacionalizados que muitos não sabem como a capoeira é mortal.

Aproveitando-se da situação, o Justiceiro do Deserto saca uma bomba de fumaça que empesteia o lugar.

Quando a fumaça se dissipa, os dois sumiram e os GMs se vêem sob o olhar maquiavélico de um barman.

Terceira Fase
Marcando um fake trading

Galhards está satisfeito hoje. Finalmente a extremamente difícil e penosa vida de adm havia lhe dado uma folga.
Depois que foi eleito, Galhards descobriu o que existe por trás de Super World. Ele recebeu ordens expressas de manter a burocracia e impedir assim que qualquer nerd não-autorizado saia da cidade. Recebeu também um gordo bônus, incluindo set completo t3, montaria épica, suprimento integral de desodorantes e muito, mas muito cash.
Durante a sua muitíssimo complicada vida de administrador, ele já havia tropeçado uma vez, ganhado cãibras nas pernas várias vezes, mordido a língua, esquecido o papel higiênico e, o pior, desligou sem querer o computador durante um download importantíssimo de um jumbo porn pack.
Ah, é difícil ser adm. Muito difícil.

Se esforçando ao máximo para ter pena de si mesmo, ele toma um enorme milk shake de chocolate enquanto maltrata newbies no Fórum municipal.
Diferente de outras cidades, o Fórum de Super World é on-line, obviamente.

”Aff, seu noob! Vc nunca ouviu falar em search, babaca? O assunto do jegue entalado no sistema de reciclagem de esgoto já foi discutido no tópico ‘Bugs na cidade’. Qualquer idiota consegue perceber que quem tem que tirar o jegue dali é o dono dele, e a prefeitura não vai se responsabilizar por uma noobice dessas. Aff, para de perder meu tempo.”

Ele pensou se deveria terminar com outro aff, mas chega a conclusão que assim seu texto se tornaria muito ofensivo. Como adm, Galhards estava impressionado com a sua capacidade de manter a calma diante de tantos incompetentes. Desde o início de seu mandato, ele ainda não ditou a profissão da mãe de ninguém nem acusou injustamente qualquer um de homossexual.

Ele estava concluindo que merecia outro milk shake quando o telefone tocou.
É a sua secretária, a Grand Mama. Ele gosta dela. Gosta muito.
Grand Mama já é de idade ligeiramente avançada em relação a ele, mas ainda mantém um corpo fenomenal e é muitíssimo eficiente. Ela usa sempre uma ridícula touquinha de panda, mas se Galhards quisesse mesmo contratar uma mulher, teria que se contentar com uma do bairro da Libertação.

- Administrador, há uma ligação do McDonalds. Acho que é aquele rapaz que se declara absolutamente normal de novo.
- Aff, que noob.
- O que eu digo pra ele?
- Diz que eu vou retornar em breve.
- Sim senhor. ^^
- Obrigado querida. – Desligando o telefone, ele se perguntava como diabos ela consegue reproduzir aqueles acentos circunflexos por ondas sonoras.

- Como é que aquele noob conseguiu o número administrativo direto? Bosta, bosta, bosta! – E enquanto reclama sozinho, ele quebra sua taça de milk shake vazia.

No outro canto da cidade, Marmota coloca o telefone no gancho. Ele já havia ligado para o adm várias vezes de sua casa, sempre sendo enrolado por aquela secretária maldita. Agora, de um telefone diferente, ele esperava ser atendido. Mas foram vãs esperanças.

Um gordo cujos óculos tinham um formato jamais visto por Marms antes para o carro em frente ao Drive-Thru.

- Eu desejo três grandes sacos de batatas absurdamente oleosas e um guaraná pequeno.
- Tá, mas o que você vai pedir?
- Ahuahuhauhauhau rofl!! Você é esperto, jovem atendente! Eu vou pedir o número três.

Marms já estava habituado com a velha piada dos nerds gordos. Eles dizem o que desejam, mas é claro que não podem comer isso. Sabe-se lá que tipo de atrofia cardiovascular pode dar num desses? E quando o ingênuo atendente está preparando, eles riem e dizem que isso era só o que eles queriam, mas não o seu pedido. Os mais sádicos e cruéis esperam o atendente preparar e negam o pedido, ameaçando-o até de processo.
Da primeira vez, foi engraçado. Mas desde então são piadas rotineiras que já encheram a paciência do jovem Marmota.

Ele pega o sanduíche previamente preparado, enche um copo de coca-cola e enche uma porção de batatas previamente fritas. Saudades do tempo em que vivia com a sua mãe e comia alimentos feitos na hora. Parece até que essa cidade só funciona na base do fast-food.
Além desta constatação o martelando todos os dias, Marms ainda convive com as piadas dos nerds gordos e o constante perigo de acordar um dia com o rosto cheio de espinhas. Todo mundo sabe que um atendente do McDonalds sempre tem espinhas.

- Cara, eu preciso trocar de emprego...
- Como é que é?
- Beba com moderação e coma com sossego! – Ele fica impressionado com a sua capacidade de improvisação.

O gordo vai embora e mais três carros vem atrás.
Após atender a todos e aturar a velha piada mais uma vez, Marmota resolve ligar de novo para o adm.

Enquanto tecla o número, ele se lembra de como o conseguiu.
Foi um cara excêntrico enrolado em um monte de cobertores. Por algum motivo ele tinha dito pra esse cara que queria sair daqui, e a figura deu esse número e disse “Todos merecem uma segunda alternativa. Mas você tem certeza de que está no lugar errado?”

Ao ligar para o número, Marms impressionado constatou que era o administrativo direto.
Desde então ele tem pensado se sair daqui é mesmo o que ele quer, mas sempre chega a conclusão óbvia de que é sim. Ele não conseguiria viver numa cidade sem mulheres, por Deus!

- Escritório do adm, boa tarde. ^^
- Boa tarde... – E enquanto diz isso ele se pergunta como diabos ela consegue mandar esses acentos circunflexos via ondas sonoras.
- O que deseja?
- Eu gostaria de falar com o adm. Parece que há um pedido deveras esdrúxulo dele, e é necessário confirmarmos a validação do pedido antes de enviarmos. – Ele resolveu mudar de tática. Talvez o adm seja um nerd tão sujo quanto tantos outros que ele já atendeu.
- Você pode falar comigo mesmo e eu repasso a informação pra ele.
- Não dá. É um pedido muito pessoal, se é que você me entende. Parece que o gerente aqui tem contato com ele e está enviando um pacote especial junto ao pedido... – Ele se pergunta se não está indo longe demais.
- Ah, claro. Eu já estou repassando. ^^

Fantástico, funcionou! Marmota nunca imaginou que fosse mesmo dar certo, então agora ele ainda está pensando no que vai falar quando o administrador atende do outro lado.
- Alô?
- Alô. – Ele parece impaciente.
- Err... é o adm?
- Aff, que tosco. Você ligou pra quem, ô mane? É claro que é o adm!
- Senhor Galhards, parece que fizeram um pedido em seu nome aqui no McDonalds. – Os insultos foram muito úteis para reanimar Marms.
- Um pedido? E aí?
- Aqui quem fala é o gerente do estabelecimento. Eu acredito que, pelo pacote ser confidencial, é melhor eu entregá-lo pessoalmente.
- Sei. – Engraçado. Ele parece não desconfiar de nada.
- ... E aí? – Há! Utilizando a técnica do oponente.
- Bom, me encontre no terceiro andar daquela construção abandonada no centrão.
- Err... Tá.
- Venha sozinho.
- Certo.
- Hoje a noite, as dez.
- Mas hoje é reveillon!
- Foda-se! Você acha que eu tô me fodendo pro reveillon? Aff, mas que...

Marms desliga o telefone. Era melhor fazer isso antes que ele próprio se revoltasse com a revolta do administrador. Torcendo pra que isso não o irrite ainda mais e o faça cancelar o encontro, ele continua sua jornada de trabalho.

- Eu desejo três baldes de Fanta maçã e uma caixinha de McNuggets!
- Fanta maçã já tá fora de circulação. Há quanto tempo você não sai de casa, seu nerd?

Quarta Fase
Um homem e uma quest

De repente, o guitarrista sumiu numa nuvem de fumaça.

- Tipo, literalmente! A porra do guitarrista sumiu numa nuvem de fumaça, lol! – Disse o baterista.

Ele é encorpado. Já foi encorpado tipo gordo, mas após um rígido regime quase militar, é um encorpado tipo forte. Argentino, mas o seu português é simplesmente perfeito. O espanhol também, por ser natural da Argentina. E o inglês igualmente, pois sempre estudou numa escola americana. Resumindo, ele tem muita facilidade com línguas.
Ultimamente tem melhorado o seu japonês também... É necessário quando se é popular numa cidade cheia de otakus.
Seu nome é Alejandro. Depois do Guide ele poderia ter trocado de nome, mas ele é responsável por cinqüenta por cento do seu sexy appeal. Ele afirma que os outros cinqüenta estão em seus peitos, que são geralmente maiores que o das garotas.
Alê tem cabelo quase longo e um boné pra trás.

- Lol, alguém tem o celular dele? – Diz o baixista.

O baixista tem a pele mestiça, é ligeiramente caipira e com o cabelo curto encaracolado. Ele já tocou em várias bandas, o que aumentou e muito a sua experiência como baixista. Desde dark black tr00 metal a pagodão de Domingo, que é bem mais difícil. Todo mundo sabe que pagodão de Domingo não tem baixo, daí ele ser tão bom. Seu nome é Pirado.

- Eeeeeeeeeeeeeeeeeeeeu teeeeeenho! – Canta Gatts, o vocalista, enquanto se debate no chão levando os remanescentes do bar a loucura.

E assim, numa melodia variando perfeitamente entre os acordes mais inalcançáveis das cordas vocais humanas, ele dita o número do celular para o baterista.

Mas Dok sempre está com o celular desligado.

- O Dok sempre está com o celular desligado, lol!
- Aí fodeu. – Diz Pira. – Acho que o show de agora já tá estragado, mas e se ele não aparecer pro de ano novo?
- Aí fodeu, né?
- É... Aí fodeu.

O show de agora estava estragado. O barman pede para que todos se retirem por hoje, enquanto ele resolve os estragos. Os GMs afirmam que haverá remuneração do governo, assim que ele conseguir convencer o administrador.

Todos vão embora e só sobram no bar o barman e os GMs. Eles saem para tentar discutir esse assunto.
Quando não se pode mais ouvir a voz deles e o silêncio reina no bar vazio, o Justiceiro se levanta debaixo da mesa. E ele faz isso de uma forma tão heróica que quase não chega a ser ridículo.

- Eles se foram! Levante-se, meu mais novo aliado!

Mordok se levanta debaixo da mesa, e é com grande alívio que ele estica as costas, setindo vértebras que jamais havia imaginado ter. Em seguida, ela se entorta de novo, voltando ao seu estado natural.

- Uhm... Parece que você fez muita coisa errada, ein? – Na verdade, Dok não sabe o que dizer.
- Tudo por um único objetivo, meu caro!
- Que seria?
- Encontrar o lote perdido das mulheres. – E isso foi tão, mas tão dramático que gelou a espinha de Dok. Hoje ela está passando por muita coisa.
- O... Lote perdido das mulheres?
- Sim, o lote perdido das mulheres.
- E isso existe?
- Espero que sim. Senão, eu tô me ferrando a toa. – Ele fala de modo tão descontraído e simpático que Dok fica inconformado.
- Você tem evidências da existência disso?
- Só uma.
- E como você sabe que é um lote? Todo mundo diz que é um bairro inteiro.
- Não, é um lote. Eu só não sei o tamanho dele, mas tenho quase certeza de que é um lote.
- E como você pode ter toda essa certeza?
- Quase certeza.
- Tá, quase certeza...
- Venha, eu te mostro.

Puxando-o pelo braço de modo leve o bastante para se mostrar espontâneo, mas firme o bastante para não parecer gay, o Justiceiro leva Dok até outro lugar.

- Você sabe que agora eles estarão atrás de você, né? E você não pode mais jogar nada por um bom tempo.
- Tudo bem, eu não jogo.
- Você não joga!? Então como você está nessa cidade?
- Você sabe o nome biológico da faixa de transição entre dois ecossistemas?
- Uhm... Não.
- Eu sei.

Quinta Fase
Event reveillon e planos de invasão

Começa a anoitecer em Super World. Este é o momento que muitos nerds voltam pra casa para trocar sua blusa preta suada por uma blusa mais preta, porém limpa.
Cox se espreguiça. Foi um longo dia de ‘refeição’ hoje, e ele já está até pegando um bronzeado. Ele sente seu estômago vazio, mas isso era de se esperar. Tudo pelas garotas.

De acordo com o seu cronograma, esta é a hora em que ele deve ir ao bairro da Libertação e xavecar umas gatinhas cute kawaii desu.

Em outros tempos, ele iria a pé. Mas agora por algum motivo ele se sente fatigado, por isso vai pegar um ônibus. Uma coisa da qual Cox adora se vangloriar é o seu senso de mapeamento e direção resultando em total impossibilidade de se perder. Ele sabe que aqui, na Praça of the Witch-King, há um ponto de ônibus. Porém, nenhuma das linhas que passa por ele o levará direto ao ponto que deseja, onde será o festival de reveillon.
Cox resolve caminhar até a estátua de tEddy, a três quadras dali.

tEddy é o mascote oficial da cidade. No centrão encontra-se uma estátua dele de cinco metros de altura sobre um pedestal de um metro e meio. Ele é o mascote perfeito criado para satisfazer as mentes mais diferentes da cidade. Seu sobretudo preto e cartola agradam a quase cem por cento da população. Seu cabelo branco a altura dos ombros totalmente bagunçado e modelado de forma a parecer que está a mercê do vento encanta jovens e adultos ao redor da cidade. O fato de ele ser um zumbi caindo aos pedaços com óculos escuros de aro redondo traz a aprovação de metal nerds de todas as partes. Suas extravagantes e milimetricamente desnecessárias asas negras representam o sonho de consumo de todo otaku no nerd ou jogador de Mu. E, por fim, ele abre um largo sorriso que revela aparelhos fixos. Isso foi feito como uma piada interna entre todos os nerds, e foi muito bem aceita.
Sim, tEddy é uma inspiração a todos.

Cox finalmente chega no ponto de ônibus em frente a estátua. Ele está incrivelmente cansado para alguém que só caminhou três quadras... descendo.
Ao seu lado, um cara de camisa social xadrez azul berrante, bermuda jeans e cabelo loiro de vida própria também espera pelo ônibus.
Delacox se declara um homem extrovertido. E agora, no meio do nada ao lado de um claro otaku, ele não poderia deixar de puxar papo.

- E aí, você é otaku?
- Não. – O homem tira um dos fones do seu iPod. É um sinal de que ele aceitou a conversa.
- Então... Pra onde tá indo? – Força Cox, você consegue!
- Libertação.
- Você se veste assim, tá indo pra Libertação e não é otaku!? – Uma abordagem direta, de forma a extrair a verdade a qualquer custo.
- Hehehehehehehe aham. - A risada do cara é tão esquisita que dá vontade de rir também, mas Cox se segura.

Um ônibus chega. No painel lê-se “Oyasumi!” e abaixo “42.2 Libertação”.
Cox e o cara colorido entram.

- Então... Tá indo fazer o que lá em Libertação?
- Comer umas gatinhas kawaii desu.
- Sério? Eu também!
- Lol! Era brinks, hehehehehehe.
- Oh... Então o que você vai fazer lá? Reveillon?
- Neeem, lol. Eu vou cortar o sistema de suprimento de energia da cidade, rs.
- Pelo jeito você não vai falar, né?
- Agora é verdade, lol! Quer ajudar?
- Nem, valeu.

O homem coloca a mão no bolso da camisa e encosta o que quer que esteja lá dentro no Cox. É gelado e sólido. Ele deve estar armado.

- Agora você já sabe, mano. Se você não ajudar eu não posso te deixar sair por aí.
- Uhm... E eu tenho escolha? – Uma gota de suor escorre pela sua têmpora.
- Não, rsrsrsrs.
- Ok então. Vamo lá.
- Rsrs.
- E qual é o seu nome, parceiro?
- Fai Fye. Mas pode me chamar de Faisão.
- Beleza então, Fye. Eu sou o Delacox. Mas pode me chamar de Cox.

É claro que ele planeja escapar na primeira oportunidade, se é que vai ter alguma.
Quando eles descem do ônibus, ele vê que provavelmente não vai.

Duas pessoas estavam esperando-os no ponto.
Uma menina de cabelo vermelho, camiseta curta preta e uma saia kawaii desu. Ela encara Cox com uma mistura de curiosidade, temor e um brilho de alegria que contrasta com a sua postura encolhida.
O outro é um homem esquisito. Ele é baixo, de óculos e cabelo alisado. Até aí tudo bem. O que chama atenção é a sua pele escamada. Ou aquilo é um cosplay muito bem feito, ou ele é uma espécie de... Homem-lagarto.

- Essa é a Miaka, e esse é o Lizardman. – Fye apresenta seus companheiros ao Cox.
- Prazer, negada. – É verdade que Cox está numa situação de perigo, mas ele não quer perder esta oportunidade de impressionar a garota. Por isso ele finge manter a calma.
- ... Prazer. – Tímida, ela responde.
- Oi. – A voz do homem-lagarto é normal. Na verdade, nem é tão grossa quanto se espera de um homem-lagarto. – Por que você trouxe esse cara, Fye? – Ele pergunta.
- Ué, ninguém queria ser a isca. Achei um.
- Espero que você esteja disposto a correr, cara.

E, diante dessas palavras, Cox percebe que está completamente fodido.

- Vamo, então. – Diz Lizard.

A gangue do Fye se dirige com o seu mais novo refém para além dos limites do bairro, em direção ao rio que corta a cidade.

Perto dali, o maior shopping da Libertação começa a se encher de otakus.
Antes da fundação de Super World, há alguns meses, os otakus eram encontrados em shoppings. Como todos bem sabem, a grande dança do acasalamento otaku se baseia em tecnologia japonesa, ou Pump it up. Se um shopping possui um Pump, mesmo que colocado nas entranhas mais profundas do edifício, haverão otakus ali. Montes de nerds suados e amontoados em volta de uma máquina programada para cantar e exercitá-los, doidos para dominá-la e provarem-se dignos das garotas.

Hoje, em especial, haverá a comemoração do reveillon no shopping. De fato, é um lugar estranho para se comemorar o ano novo. Mas mesmo depois de mudarem-se para uma cidade que, em contrapartida a todas as outras do Brasil, os aceita e acolhe, os otakus ainda possuem uma grande paixão por se esconder em shoppings. Vai entender.

Vários nerds vestidos com cosplay de seu personagem favorito, carregando mochilas cheias de tralhas indispensavelmente inúteis e toucas das mais extravagantes vão entrando no shopping. A animação lá dentro é visível. Luzes coloridas saindo de todas as janelas do shopping iluminam a escuridão da noite e músicas em japonês atraem todos para a festa.

Uma japonesinha de pele escura e bochechas enormes está encarregada do karaokê e da venda de fichas.
Ela fica perdida diante de tanta gente fazendo pedidos, mas faz o possível para manter a calma e a ordem.
Melhor dizendo, a calma ela já deixou pra lá.

- SILÊNCIO, CALMA! – Ela grita se colocando de pé.

A bagunça continua a mesma. Mas pelo menos num raio de dois metros a sua volta, as pessoas pararam para escutá-la. Afobada, ela tenta reencontrar sua linha de pensamentos.
Colocar a próxima música pra tocar. Receber mais uma ficha, anotar o pedido.
Ok.
Respirar. Isso, respirar é bom.
Ok.
Agora escolher alguém pra atender. Fazendo cara de séria, como se soubesse quem chegou primeiro.

- Você. O que você vai querer?
- Eu quero três quilos de Mupy!
- Saindo três quilos de Mupy pro altão ali!

É inegável. Mupy sempre foi a bebida mais idolatrada e indispensável dos otakus. Após um crescimento desproporcional da empresa e várias inovações, eles agora vendem até a quilo. E vende muito.

Uma cosplayer de Konata do anime Lucky Star, passa a sua frente.
- Konata! Eu te amo!!!
- Quem? Eu ou a Konata?
- A Konata, claro. Eu nem te conheço, sua esquisita.
- Ah... – A menina pareceu chateada.
- Não fica assim. Me passa seu MSN que a gente resolve isso! – Ela tenta se redimir.

Enquanto isso, longe do barulho e da confusão, quatro pessoas excêntricas se aproximam da grande hidrelétrica nuclear de Super World.

Sexta Fase
Um capítulo enorme e cheio de ação

São oito e pouco quando Mordok e o Justiceiro do Deserto chegam em frente a um prédio de escritórios. Eles vieram caminhando a pé do outro lado da cidade, pois pegar um ônibus seria o mesmo que se entregarem aos impiedosos GMs.

- Putaquepariu, eutocansado. – Com sua mente brilhante, Dok calculou que gastaria menos energia se cortasse os espaços entre as palavras.
- Calma, aliado. Nós chegamos.
- Onde estamos, exatamente? – Ele começa a se recuperar.
- Esse é o prédio da imobiliária Sephi Hot.
- Por que esse nome escroto?
- Sei lá, chama a atenção dos nerds.
- Tá, e o que tem aqui que tem a ver com o lote das... Ah, claro.
- Sim, foram eles que cuidaram da transação.
- E como você pode saber que o lote é destinado as mulheres?
- Vou te mostrar. Venha!

O Justiceiro corre para um beco estreito ao lado do prédio. Dok vai atrás.
Sem muita dificuldade, um ajuda o outro a subir pela escada de incêndio travada. Eles sobem por ela até o sétimo andar.

- É aqui.

Através da janela, eles vêem um grande cômodo movimentado cheio de funcionários cansados e irritados. Os homens trabalham em computadores e relatórios num silêncio sepulcral.

- Os arquivos ficam naquele armário do outro lado da sala.
- Como a gente chega lá sem esses homens repararem?
- Eu acho que se nós passarmos no meio deles, eles nunca vão reparar. Mas não devemos arriscar.
- Não diga. – Na verdade, Dok não sabe se ele estava falando sério.
- Vamos esperar eles irem embora, sim?
- Ok.

Longe dali, na hidrelétrica nuclear de Super World, dois homens montam guarda em frente ao reator principal. Iluminados por uma luz verde que eles esperam não ser radioativa, conversam.

- Esse trabalho é uma bosta.
- Não diga.
- A gente fica parado aqui toda noite e ninguém invade isso aqui. É uma cidade cheia de nerds! Por que algum deles iria querer cortar a energia? Tipo, nenhum nerd sobrevive sem eletricidade.
- Eu sei.
- E quando é reveillon e todo mundo sai pra festa, quem é que sobra aqui? Eu e você! Eu, você e aquele idiota no portão! Ah, isso me irrita!
- Também me irrita, Danilo. Agora para de reclamar!

Ele o chama de Danilo, mas seu novo nome é Daniboy. A verdade é que ninguém em sã consciência o chamaria assim, por isso seu nome anterior continua em uso.
O cara que disse isso chama Blaze. Na verdade, Blaze não precisa trabalhar. Ele só arranjou um emprego para os seus conhecidos não encherem seu saco. Blaze é podre de rico.
E agora ele se pergunta se não deveria ter arranjado outro.

- Sabe, Blaze... Eu sou mais inteligente que isso. Eu poderia ter arranjado um emprego bem melhor que esse.
- Haha, ué? E por que arranjou esse?
- Sei lá, foi fácil. Mas amanhã mesmo eu vou procurar outra coisa pra fazer. Agora essa é a minha promessa de ano novo.
- Combinado.
- E você? Por que arranjou esse emprego?
- Pelo mesmo motivo que você. Foi fácil... Ninguém queria cuidar de uma usina nuclear embaixo de uma cachoeira.

E é justamente o som da cachoeira que os impede de ouvir o abafado grito do idiota no portão.

Pasmo, Cox assiste ao assassinato. Lizardman guarda novamente sob a camisa as machadinhas que usou para apagar o homem.

- Você... matou o cara?
- Não, bobo. Ele caiu de sono. – Sem perder a calma, o homem-lagarto responde com ironia.
- Agora chega a parte difícil, Cox.- Diz Faisão. - Como é reveillon, esse deve ter sido o único guarda da hidrelétrica. Mas o sistema de segurança deles é muito sofisticado. Eu sei, eu programei.

Cox olha para onde Fye está olhando.
Atrás do pesado portão de grade grossa, dá pra ver um terreno acidentado que os separa da hidrelétrica, uma grande construção suspensa por fortes vigas de aço sobre o rio.
A gigantesca cachoeira de cem metros de Super World cai sobre ela, numa espécie de funil gigante. De alguma forma, a força da água gera energia para a fusão nuclear ou coisa assim. Ninguém nunca se interessou muito na explicação. Só é importante saber que aquela hidrelétrica nuclear é a única fonte de energia da cidade inteira.

Começa a chover forte.

- Oba. Assim como a Miaka previu, veio a chuva. Acostume sua visão, Cox, e você verá pequenos filetes azuis verticais espalhados pelo terreno.
- Sim, e daí? – Cox via os filetes, e isso estava começando a assustá-lo.
- São bombas perseguidoras. Se você passar por qualquer um desses filetes, elas vão te seguir por certo período e então explodir.
- Sei. Então o que eu tenho que fazer é passar sem encostar em nenhum? – Com essa chuva forte, vai ser relativamente fácil fazer isso. Cox sente que talvez sobreviva hoje.
- Lol, até parece. Você vai passar pelo maior número possível de sensores e isso vai abrir caminho pra gente.
- Nem fodendo!

Fye saca seu revólver, e isso faz Cox repensar seus conceitos.

- Você pode morrer agora, ou pode quase que com certeza morrer jajá. É uma escolha fácil.
- Vendo por esse lado, você tem razão.
- Hehehehe, eu sei.

Com uma ferramenta esquisita que se assemelha a um macaco de parede, Lizard abre o portão.
A abertura forçada faria o alarme soar caso Miaka não tivesse rapidamente colado um chiclete sobre o sensor, confundindo-o.

O caminho está aberto, e Cox encara todos aqueles bonitos filetes de luz azul sabendo que eles provavelmente significam seu fim.

São dez horas.
No terceiro andar de uma construção abandonada no centrão, Marmota está esperando com um pacote em mãos.

Um homem branquíssimo e bem vestido, de paletó e calça brancos e cabelo loiro levemente penteado está se aproximando.
Ele para a três metros do outro.

- Tudo bem, eu vim sozinho. E aí, cadê a entrega? – Diz o adm.

Marms, que sabiamente manteve-se vestido com o uniforme do McDonalds, mas sem o ridículo chapéu, não mostra sinais de querer entregar o pacote.

- Vamos, eu ainda tenho que sair daqui pra comemorar o ano novo. Você pensou que eu era um desses inúteis que passa o reveillon em casa? Não, eu tenho que estar na lan house jajá. Agora me passa esse pacote!
- Passo. Assim que resolvermos uma coisa.
- O que foi? – O adm coloca a mão no bolso de trás, onde mantém guardada sua arma.
- Eu preciso que você tire um cara da cidade.
- Aff, você não tá gostando da minha cidade?
- Não é a sua cidade, pra início de conversa. E não sou eu. É um amigo.
- Se eu pudesse, juro que mexeria uns palitos pra tirar o seu amigo daqui. Mas a burocracia é maior que eu, sabe. É uma coisa que envolve o governo. – Ele mente.
- Você mente. Eu ouvi de pessoas que conseguiram sair. Eu sei que é possível!
- É, é possível sim. Sabe, essas grandes festas de ano novo sempre terminam com algumas mortes.
- Onde você quer chegar?
- Se o nosso cemitério lotar, eu mando seu cadáver pra algum outro, fora daqui. – Falando isso, o adm saca a arma e aponta para Marmota. É uma pistola branca, com bonitos detalhes dourados. Bem firulada.
- ... Por que?!
- É claro que você queria me enganar, seu noob. Achou que eu era trouxa que nem você a ponto de cair nessa?
- Quando você descobriu!?
- Eu sempre peço lanches triple-size family. Meu pedido nunca caberia nessa caixinha.
- Merda. - Ele devia ter imaginado. - Se você atirar, todo mundo vai ouvir. Alguém vai vir aqui e te pegar!
- Com essa chuva? Aff, como você é burro. Ninguém ouviria. Mas relaxa, eu não pretendo atirar em você. Não se você se comportar. Nós vamos ficar aqui um tempinho, só esperando os GMs chegarem. Eles saberão cuidar de um fake como você. Vai ser um saco, eu sei. Mas é necessário.
- Você não tem um encontro numa lan house? – Marmota não acredita que está dizendo isso.
- Sim, mas eles não podem começar sem mim. Naturalmente, eu sou o grande Ó do borogodó. – Ele também não acredita que ouviu isso. – Já que vamos esperar tanto tempo, não quer sentar?

No sétimo andar de outro prédio, os funcionários começam a partir. Dok e o Justiceiro observam o último saindo e apagando a luz.
Mas, quando ele ia forçar a tranca da janela, um bipe é ouvido lá de dentro. Tensos, eles param.
Uma rede de lasers rapidamente preenche a sala. Cortando-a na horizontal, vertical e diagonal, em todas as dimensões, é impossível passar um palito ali sem que ative o sistema de segurança.

Sem reação, o Justiceiro cai sentado.

- Nossa, eles compraram um sistema de segurança melhor.
- E agora, o que é que a gente faz? – Dok começa a se conformar com a idéia de ir embora. Talvez comemorar o reveillon hoje, quem sabe.
- Sente-se e me ajude a pensar. Há de haver um modo de conseguirmos! – E isso foi, como sempre, heróico.

Dok se senta ao seu lado. Ele está pensando sim, mas pensando em outras coisas. Ele imagina se valeu a pena entrar no meio daquela briga. Pensa no show de reveillon que ele deve ter estragado por não comparecer, e na puta bronca que vai levar da banda quando voltar. Pensa se já não reviraram sua casa. Se é seguro voltar.
Então ele lembra que não há mulheres. Percebe porque não largou o Justiceiro sozinho antes. Ele também quer encontrar as mulheres. Ele também quer acreditar nessa lenda e desvendar de uma vez por todas onde estão as nerds não otakus dessa cidade.
Mas cara, essa chuva realmente desanima.

Com medo, Cox cruza o portão entreaberto.

- Se tentar sair pela tangente, toma bala.
- Omg. Ok.

Ele dá os primeiros três passos. A água escorrendo pela sua cara e passando pelos seus olhos o está atrapalhando. Ele agora tem mais dificuldade para ver os fracos feixes de luz azul.

E agora? O loiro realmente parecia estar falando sério quando disse que atiraria se ele tentasse fugir. Talvez a melhor opção seja mesmo correr desesperadamente. Agora ele começa a pensar se essa semana de fotossíntese valeu a pena. Ele repara que desde que virou um otaku, ainda não pegou nenhuma gatinha kawaii. Oh, vida.

Fye observa o homem kamikaze indo em direção as bombas. Ele se lembra dos tempos em que trabalhava nessa empresa de segurança. Lembra de como foi feliz o dia em que descobriu essa luz azul, que só reflete em água. Ele a batizou de “luz Fyegênica”.
Ele lembra-se de como ficou feliz por se mudar para uma cidade de nerds.
Lembra-se de como conheceu Lizard e Miaka, e dos planos mirabolantes que eles tinham. Percebe que, sem ele, eles nunca teriam chegado aqui. Talvez sem eles, ele também não tivesse. É, eles formavam uma boa equipe.
Observando o guarda estirado no chão, ele repara que certas sacanagens exigem sacrifícios. Ele acha que se o guarda estivesse no seu lugar, ele faria o mesmo.

Sons robóticos. A primeira bomba foi ativada.
Uma espécie de topeira robô se desenterra do chão. Um visor no lugar de seus olhos mostra o tempo que falta para explodir. Cinco segundos.
Com a perfeição de um animal real e naturalmente mais rápido que uma topeira, ela corre atrás do Cox.

Após uma semana seguindo a rígida dieta de luz, o corpo de Cox não deveria ser capaz de correr tão rápido. Mas quando sua vida está em risco e depende por você ser ou não alcançado por uma topeira artificial explosiva, seu cérebro resolve ignorar a física, a biologia, a química e o que mais for preciso.
Cox corre como um raio em direção ao rio. Se ele se jogar ali, talvez tenha chances de ser arrastado e sobreviver.
Ele passa por mais três sensores. Mais três toupeiras.

Ao som da primeira explosão, Fye, Lizard e Miaka correm para a grande usina.
Foram essas as instruções de Fye. Uma explosão é o suficiente para atrair várias topeiras em volta, dando espaço para eles passarem.

Em frente ao reator principal, Danilo e Blaze sacam suas armas.

- Essa explosão foi o sistema de segurança sendo ativado, né?
- Aham. Provavelmente.
- E o que a gente devia fazer agora, mesmo? – Danilo está assustado, mas ele sabe se controlar. A pergunta sobre o procedimento padrão é sincera.
- A gente vai até a entrada com cuidado, pra ver se o sistema pegou mesmo o invasor.
- Certo.
- Certo. – Blaze só repetiu para disfarçar o nervosismo. E pensar que amanhã eles iriam procurar outro emprego...

Danilo e Blaze se dirigem agachados até o portal da ala do reator principal. A próxima ala é o hall que separa o pequeno setor administrativo da área de reação.

Três explosões seguidas são ouvidas lá fora.

É uma área ampla. O teto possui uma grande janela oval, e a sua volta várias lâmpadas fluorescentes apagadas.
Na parede esquerda ao portal do reator, a escada que leva ao setor administrativo.
Do lado oposto ao portal, as portas de aço totalmente a prova de arrombamentos... tombadas.

Duas figuras estão de pé na entrada. No escuro é difícil enxergar algo além de suas formas. E mesmo as formas só são possíveis de ver pois são vistos contra a luz que vem dos longínquos postes da cidade.

Um usa saia e o outro tem o cabelo esquisito. Nessa cidade não dá pra tirar conclusões precipitadas sobre ninguém. Por isso não se pode ter certeza se o vulto de saia é um homem ou mulher. Nem mesmo sua opção sexual deve ser possível definir.

Os guardas apontam as armas para eles.
Mais duas explosões lá fora.

- Mãos pro alto! – Blaze grita. Ele imagina que os caras elaboraram uma engenhoca genial pra ludibriar todas as bombas da entrada.

Ambos colocam as mãos na cabeça.
Um deles fala. Pela distância, não dá pra ver a boca se mexendo nem saber qual foi.
A voz é masculina.

- Agora é tarde.
- Cala a boca, vocês foram pegos! – Esse foi Danilo.
- Ainda não. – Diz a mesma pessoa.

Danilo e Blaze começam a se aproximar lentamente, passo após passo. Alguma coisa nesses caras os deixa apreensivos. Talvez seja o fato de eles terem conseguido derrubar as portas de aço.

Fye e Miaka derrubaram as portas de aço explodindo as dobradiças. Sendo ele o idealizador de todo o sistema de segurança do local e ela uma menina extremamente eficiente e conhecedora de alguns tipos de explosivo, não foi a parte mais difícil.

Fye analisa sua situação. Está tudo indo conforme o planejado, exceto por esses dois guardas que apareceram do nada. Ele e Miaka estão parados no fim da ponte que separa a hidrelétrica do leito do rio.
Pelo canto de olho, ele observa Miaka tremendo. É claro que ela está apavorada, essa vida não foi feita pra ela.
Ele queria poder dizer que ela deve manter a calma, mas não pode estragar o andamento do plano. Ele tem que continuar falando com os guardas. Pelo menos até Lizard agir...

Marmota está sentado no terceiro andar de uma construção abandonada abraçando um pacote. Sentado exatamente a sua frente está seu seqüestrador legal com um revólver em mãos.

”É engraçado pensar assim.” Pensa Marmota. “Aquele homem tem a lei ao seu lado, no fim das contas. Ele quer me segurar nessa cidade maluca provavelmente pelo resto da vida e agora quem vai ser preso sou eu, por qualquer coisa que ele vai inventar quando os GMs chegarem.”

- Meus braços já estão começando a cansar. Você não quer segurar o revólver apontando pra si mesmo por mim? – Diz Galhards, o adm.
- ... – Ele está boquiaberto diante de tamanha oportunidade.
- Lol! Tava te zoando, seu trouxa. Achou que eu era mesmo tão noob? Vê se não faz nada que eu não goste aí, porque eu não quero ter que atirar e manchar meu terno branco.

”Desacato a autoridades, talvez?” Marms começa a pensar nas possibilidades de suas acusações. “Fake e apropriação de cargo alheio?”

”Não, eu não vou deixar minha vida acabar assim. Ou saio livre daqui, ou morro tentando.”

Num acesso de determinação e fúria, ele se joga sobre Galhards, atacando-o com o pesado pacote.

As luzes se apagam. Todas as luzes da cidade.
Dois tiros são dados e ninguém os escuta em meio ao barulho da chuva.
É o início do ano novo.

Sétima Fase
De quem é esse jegue?

São oito da manhã do primeiro dia de Janeiro.
As ruas ainda estão molhadas pelo temporal que deu essa noite, e o cheiro de água evaporando é confortante.
Joseph vive na zona rural localizada nos arredores de Super World, mas agora ele está na cidade procurando seu jegue.

Andando a esmo, ele vê como a cidade está parada. Ao que parece, o Guide estipulou que o horário normal de funcionamento do comércio e indústrias começa às dez da manhã. Vida boa, essa. Lá na fazenda ele ainda se levanta junto com o Sol todos os dias.

Logo chegará a época da colheita, conhecida como “The Gathering”, e sua família na fazenda vai precisar dele. É melhor Joseph encontrar logo o seu jegue, ou vai ter que partir pra casa sozinho.

Por onde começar?
Ele chama um táxi.

- E aí, você tem fichas de cash? – O taxista caipira pergunta sem preconceito, visto que o outro caipira pode não saber que ele só aceita isso.
- Tenho sim. Tem um cara que compra galinhas da nossa granja e paga com isso. – Joseph entra no carro.
- E aí, vai pra onde? – O motorista começa a se perguntar se essa não se trata de uma enorme coincidência.
- Ah, você pode me ajudar? Eu perdi meu jegue aqui na cidade, e não faço idéia de onde começar a procurar.
- Putz, se eu conheço esse povo, já podem ter feito várias esquisitices com o seu jegue.
- Espero que não.
- Bom, a gente pode circular um pouco por onde você perdeu, ver se ele parou por lá.
- Beleza. Foi na Rua Martelos de Pedra a Machados de Ouro Duplo, perto da estação de reciclagem de esgoto.

O táxi acelera.

É uma mulher bem bonita. Usa perigosas roupas de secretária que deixariam louco qualquer nerd, além de um decote aberto demais para o seu senso moral. Seus cabelos morenos estão presos num coque e ela usa óculos precisamente apoiados na ponta do nariz. O salto alto é alto demais e a pequena maleta que carrega na mão a está incomodando.
O cheiro de mofo é terrível e o ar circula pouco e é desconfortavelmente abafado. Seus gigantescos seios movem-se enquanto ela respira, procurando oxigênio. É por causa deles que ela se encontra nessa situação, e nesse momento pragueja por tê-los.
Ela já estava presa no elevador haviam oito horas. Não importou o quanto gritou e chamou, parece que ninguém a ouve nesse prédio catastrófico.
Bate muita fome e vontade de ir ao banheiro há muito tempo, e ela começa a analisar a possibilidade de resolver ali mesmo. Não, uma mulher direita não faz essas coisas em hipótese nenhuma.

Quando o conselho decidiu que alguém devia vir pessoalmente tratar com o homem, ela foi sumariamente contra. Quando decidiram que seria ela, foi mais ainda. Ela é uma mulher de leitura, não de visitas ou ação! Leitura, pelo amor de Deus!
Ela ainda lembra das palavras do conselho...

- Tem que ser você, Sarinha! Você sabe como as coisas funcionam com aquele cara. Nós precisamos mandar uma mulher de peito.
- E por que justamente eu? – Ela sabia que tinha muito peito, nos dois sentidos. Mas não entendia porque não chamavam a Line, igualmente respeitosa.
- Você conhece a papelada. Você sabe qual é o problema, Sarinha. Ao menos faça isso pela comunidade feminina! Nós que já fizemos tanto por você.
- Ah, meu Deus... Eu vou.

Efusivas e femininas palmas ecoaram pelo Conselho.

- Mas abra mais um pouco esse decote, Sarinha.
- Se vocês pensam que eu vou... vou... AH, se vocês pensam que... – ela não conseguia nem finalizar a frase.
- Não Sarinha, você não precisa fazer nada com ele. A parte do decote é apenas um toque a mais. Você sabe como funciona.
- Sim, eu sei...

A reunião com o homem havia ido muito bem. Ele tentou se aproveitar da situação, mas ela soube manter o controle. Mas quando estava indo embora, o elevador simplesmente enguiçou. E agora ela estava ali, presa, com provas irrefutáveis da existência do lote perdido das mulheres na maleta em suas mãos. Caso alguém aparecesse, ela sabia que era só se fingir de otaku. Em último caso, abrir um pouco mais o decote. Mas e se a informação da maleta vazar? O futuro das garotas estava em suas mãos, e ela presa ali como um bicho numa caixa. Uma caixa fedorenta e pouco ventilada.

Por sorte, no meio do caminho o taxista lembrou do jegue entalado no sistema de reciclagem de esgoto. Seria essa outra enorme coincidência?
Ele deixa o caipira na rua, recebe o pagamento e vai embora. Quem diria que um dia iria fazer uma corrida para o homem que lhe vende galinhas? O mundo é mesmo pequeno.

Joseph está desolado diante da entrada da estação de reciclagem de esgoto. Ele acabou de descobrir que seu prezado jegue provavelmente está entalado lá desde que ele o perdeu, há um dia.
É um lugar grande, naturalmente. Todo o esgoto dessa região da cidade é direcionado pra lá. Eles escorrem numa tubulação subterrânea e passam por uma série de procedimentos envolvendo escoamento e tratamento dos mais variados tipos. Todo o processo é coberto, e é em algum lugar lá dentro que provavelmente está seu jegue.

Ele entra. A recepção é pequena. Só uma sala com um sofá de dois lugares e um balcão. Não há ninguém.
Joseph toca a campainha do balcão e se senta para esperar.
Não há biscoitos, revistas de viagem, pixações na parede, nada. Nada que possa ajudá-lo a passar o tempo.
Ele espera dez minutos.
Toca a campainha de novo e se senta.
De acordo com o relógio de pilha na parede, passam-se mais dez minutos.
Joseph perde a paciência e pula o balcão. Ele sabe que o jegue precisa dele, e não vai ficar aqui sentado esperando.

Ele passa pela porta dos fundos, aberta.
No escuro, estende o braço tateando por um interruptor. O encontra, mas ao apertar nada acontece.
Joseph atravessa um corredor escuro, e quando chega na outra extremidade tenta ascender a luz do novo recinto sem sucesso.
Pelo som, as máquinas estão funcionando normalmente. Talvez a energia aqui tenha caído temporariamente e a estação continue funcionando por geradores reserva...

Após um tempo parado se acostumando ao escuro, Joseph prossegue. Ele atravessa uma plataforma, desce uma escada vertical, passa por pontes e maquinários estranhos. Sempre no escuro, muito mal iluminado por uma fraca luz vinda de uma janela empoeirada próxima ao teto.

A próxima área é esterilizada. Com dificuldade, ele coloca um uniforme hermeticamente fechado que estava pendurado ao lado e entra numa câmara.
Escuro absoluto.
Uma gravação extremamente sensual toca:
”Por favor, mantenha-se imóvel enquanto o esterilizamos.”
Ele fica parado, e uma nuvem de alguma coisa é borrifada sobre ele, seguida de um vento forte.
”Obrigada, prossiga.”
A porta oposta da câmara de esterilização se abre e um excitadíssimo Joseph sai por lá.

Este recinto é grande e totalmente fechado. Algumas luzes vermelhas, provavelmente frutos dos prováveis geradores de reserva, estão acesas.

Ao centro, uma fraca, porém larga corrente de água passa. É como um rio artificial do que já foram dejetos nerds dos mais variados.
Por mais tratada que a água esteja neste ponto, Joseph agradece por estar com um capacete hermeticamente fechado.

Ele analisa a situação. Se dizem mesmo que tem um jegue entalado em algum lugar da estação, provavelmente é aqui. A partir de agora a água deve passar por afunilamentos e ocupar uma área minúscula, do tipo que um quadrúpede não caberia.

Joseph pula na água.

Oitava Fase
Welcome to the jungle

Dok se levanta cansado. Ele dormiu muito pouco, na verdade. Olha as horas e constata que ainda são nove e tantas.
Enquanto vai lavar o rosto, ele se lembra da noite anterior. Por uma coincidência de improbabilidade astronômica, a energia de toda a cidade caiu justamente quando ele precisava passar por um sistema de segurança eletrônico.

O Justiceiro arrombou a janela e, com uma pequena lanterna, procurou pelo arquivo que queria mostrar.
Estava escondido no fundo de um dos últimos armários.
Dok não tinha muita experiência com relatórios de imobiliárias, mas o Justiceiro lhe mostrou o claro ponto que especificava o proprietário legal do lote vendido:

“Toda a população feminina não otaku de Super World”

Tão claro e ao mesmo tempo confuso e inacreditável quanto uma mancha branca numa casca de ovo.

- Isso é ridículo. O que é que isso prova? Qualquer funcionário pode ter zoado isso aqui.
- Não, não. Esses relatórios são coisa séria. Tudo documentado aqui é estritamente oficial. Não se brinca com essas coisas. Veja.

O Justiceiro do Deserto lhe mostrou outros relatórios, e em todos eles lia-se um nick no campo de proprietário legal, e não o nome de um grupo.

“Darkness_Chuck Norris”
“Tom Clancy’s Father”
“eViL-666fRoMhElL 100gato”
“Rock Lee Skywalker”
“MITO DO CS”

- Agora veja isso aqui. Esse também mostra um grupo como proprietário legal do lote.

Ele lhe mostrou o documento da Estação de Reciclagem de Esgoto do bairro Gunbounders.

“Prefeitura de Super World”

- Vê? Não é brincadeira. Esse lote é real e as proprietárias dele realmente são as mulheres que faltam nessa cidade.
- Tá. – Dok ainda custava a acreditar na verdade estampada em sua frente, mas decidiu continuar como se isso já estivesse resolvido. – E não dá pra ver o endereço do lote no documento?
- Sim, geralmente daria. Mas veja.

O Justiceiro o mostrou novamente o documento das mulheres de Super World. No campo de endereço, lia-se “Confidencial”.

- E aí, o que lhe resta?
- Eu estou a procura do agente imobiliário que efetuou a transação do lote. Ele já não trabalha mais aqui. Foi demitido logo após a venda. Além disso, não fui capaz de conseguir descobrir nem seu endereço nem nada sobre ele. Eu só consegui uma foto pesquisando no Orkut... Veja.

Ele lhe mostrou uma foto imprimida em folha sulfite. Nela via-se um homem vestindo uma camisa regata laranja fosforescente de péssimo gosto e um short azul. O homem moreno tinha cabelo chanel moreno na altura do queixo e cavanhaque acompanhado de barba por fazer. Ele erguia uma taça de alguma coisa presumivelmente alcoólica com uma cara presumivelmente alcoolizada.

- O nome é Preto. Preto Prata. Criativo, não?
- Hehe, sim. Criativo. – Dok havia simpatizado com o cara da foto. E era aquele o homem com a chave para o mistério das mulheres.

Agora Dok se lembra disso enquanto toma seu café. Panquecas italianas acompanhadas de almôndegas italianas e molho especial italiano. Tudo receita de sua vó Nona. Tudo frio, pois por algum motivo a energia ainda não voltou.
Após a invasão a imobiliária, ele e o Justiceiro separaram-se. Dok arriscou voltar pra casa, mesmo sabendo que agora estava sendo procurado. Ele deu seu número e endereço ao encapuzado para futuro contato. Agora eles estão juntos nessa.
Após o café ele liga para os caras da banda. Precisa contar o que aconteceu e ver quem ficou com a sua adorada guitarra.

Cox acorda. Cada célula do seu corpo dói, e algumas fora dele também. Como se isso fosse possível.
Ele sente como se houvesse um grande pedaço de seu peito faltando, e por um instante se preocupa. Depois lembra que ele nasceu assim mesmo.
Desde pequeno, Cox tem um buraco no peito que sempre é sinal de chacota por parte de seus amigos. Eles não sacaneiam por ele ter um simples buraco, mas sim por se preocupar tanto com ele. Todos concordam que ninguém falaria do buraco se Cox não fizesse tanta questão de escondê-lo.

Enquanto alisa seu pequeno defeito, Cox observa o céu. Ele decide ter uma breve premissa do cenário que o rodeia antes de se levantar.
A cor azul clara indica que é de manhã. A falta de coisas caindo sobre sua cabeça e tampando sua visão indica que parou de chover. As explosões... Bom, as explosões ainda ecoam em sua mente. Mas ele chega a conclusão de que está apenas traumatizado pelo resto da vida. Até aí tudo bem.

Uma coisa é certa, ele não morreu. Cox se concentra em sentir cada pedaço do seu corpo para averiguar se não falta nada. Nada além do que sempre faltou em seu peito, é claro. Parece tudo em ordem.

Ele se levanta num salto.

Uma tontura sem precedentes afeta sua mente. Sua visão se embaça em rosa e azul e ele perde totalmente o senso de equilíbrio, caindo.
Certo, um rapaz estudado como ele devia saber que não se levanta tão rápido depois de tanto tempo parado. Essa tontura foi natural. Sua mente não tem nada de errado. Pelo menos ele espera que não.

Quando todas as dimensões de matéria dentro e fora de sua cabeça voltam a fazer sentido, ele se levanta novamente. Dessa vez devagar. Sentando primeiro, analisando o ambiente e se levantando em seguida.

A sua volta, tudo verde. Uma floresta. As explosões que ouvia não eram explosões, mas a água do rio correndo ao seu lado. Ele ainda acha que está traumatizado, pois ninguém confunde o som da água com explosões.

- Anyway...

Ao que parece, seu plano de pular na água e ser violentamente arrastado pelo rio sem destino ou qualquer garantia deu certo. Ele está na margem do rio, no meio do mato, sabe-se lá a que distância de Super World, perdido e com fome.

Com fome... Bom, já passou da hora de largar essa ridícula dieta da fotossíntese.
Cox começa a pensar em como arranjar comida na situação em que se encontra, quando alguém cutuca seu ombro.

- Oi...

Parece que Miaka caçou alguns coelhos.

Nona Fase
Um nerd sem All Star

Cada ralo músculo do rapaz se enrijece como pode quando ele avista a menina. Ele endireita a coluna, limpa a garganta, estufa o peito e responde com uma voz tão grossa quanto uma gralha gripada.

- Oh, olá.

A menina dá umas risadinhas. Ele limpa a garganta, tentando manter a seriedade. Malditas cordas vocais.

- Olá. – Ele tenta de novo, com mais sucesso.
- Oi. Quer me ajudar a preparar esses coelhos? – Engraçado. Esse é o diálogo mais longo que ele teve com essa menina desde que a conheceu.
- Uhm... Claro. Claro, vamos lá. – Não deve ser muito difícil preparar coelhos, afinal.

Os próximos momentos foram os mais nauseantes da vida de Cox.
Dissecar, esquartejar, cortar, escalpar, ralar e assar os coelhos custou-lhe um grande naco do que ainda lhe restava de sanidade.

Agora estavam os três sentados, comendo em silêncio. Fye também estava com eles, como Cox tristemente veio a descobrir depois.
Quando a energia foi cortada por Lizard e todas as luzes se apagaram, inclusive a dos postes que pouco iluminavam Fye e Miaka, os guardas atiraram. Um tiro cada um.
Como planejado, Miaka e Fye saltaram para os lados, caindo no rio. Nenhum deles foi atingido.

Mais tarde, em meio a sua fuga pelo mato, encontraram Cox e estabeleceram acampamento por lá.

- Por que vocês não me mataram? – Ele corta o silêncio.
- Pra quê? Não somos assassinos. – Fye responde por eles, pra variar.
- Aquele guarda do portão discordaria se estivesse vivo.
- Tecnicamente, se ele estivesse vivo nós não o teríamos matado e ele não teria ponto nenhum pra argumentar. – Com cara de pouco caso, Fye revida.
- E o seu amigo com cara de sapo, como é que ficou?
- É um lagarto. – Para defender o colega, Miaka levanta a voz pela primeira vez.
- Foda. – Ele ia dizer “foda-se”, mas lembrou-se que estava falando com uma menina e manteve seu código de honra.
- Ele se vira. Combinamos de nos encontrar aqui.
- Então vocês vão ficar aqui esperando ele?
- Nós vamos. – E ele realçou o “nós”.
- Nem fodendo! Eu já fiz minha parte, tô indo embora!
- Pra contar pros GMs que foi a gente que cortou a energia da cidade inteira? Hehehehehehe, você é engraçado. – Ele ri genuinamente. – Não. Vai ficar com a gente. – Sua pistola ainda está na camisa.
- ... Droga. – Cox nem havia pensado nessa possibilidade, mas provavelmente é o que faria mesmo.

Lizardman se debate, mas as algemas não dão sinal de que vão soltá-lo. Ele foi algemado ao portão da hidrelétrica nuclear, e agora está ali sob o Sol sendo vigiado por dois guardas.

Blaze golpeia seu rosto novamente.
Danilo o segura.

- Calma Blaze. Você já bateu bastante nele. Espera os GMs chegarem que eles cuidam do cara.
- E ele vai ser impedido de jogar? Grande coisa. Prefiro fazer minha própria justiça. – Ele tenta golpear novamente o homem-lagarto, mas Danilo o impede.

Lizard está cabisbaixo. Quando for pego, vão impedi-lo de jogar Dota.

- Dota... – É como se ele clamasse por um ente querido há muito morto.
- Cala a boca, filho da puta!

Blaze não consegue acreditar no sistema de punição da cidade, e menos ainda no fato de ele funcionar perfeitamente. Ele fica revoltado com a tristeza do homem por não poder mais jogar Dota.
Mais ainda, ele está revoltado com ele por tê-lo golpeado por trás. O curativo colocado em seu braço havia resolvido tudo, mas foi realmente um golpe baixo.

Lutando no escuro, Danilo e ele conseguiram imobilizar o homem. Ele se mostrou incrivelmente forte e sua pele era assustadoramente lisa, mas ele se rendeu quando Danilo conseguiu encostar a arma na sua testa.
E agora eles esperavam pelos GMs.

Um camburão branco de janelas revestidas com insulfilm vermelho se aproxima com velocidade. A sirene solta um som que lembra a conexão de internet discada. Por algum motivo esse som espanta todo o nerd em seu caminho.
O camburão estaciona em frente ao portão e dois brutamontes de calça colada descem de lá. Um deles Danilo e Blaze já conheciam.
Era Fê, o gigante gaulês.
Um homem magro, mas incrivelmente forte e mortal. Faixa preta em uma quantidade absurda de artes de combate armado e desarmado incluindo Kung Fu, Kendô, Jiu Jitsu, Jo Ken Fight e Tae Kwon Do.

- Olá garotos. – Por trás do visor vermelho, eles vêem um sorriso zen e absolutamente mortal.
- Oi Fê. Você pode levar esse cara? O Danilo te explica tudo.
- Sem problemas. Buda, me ajude aqui.

O outro GM, mais gordo, o ajuda a segurar o homem-lagarto enquanto Danilo tira suas algemas.

- Cosplay legal, cara. Como arranjou?

Fê mantém o bom-humor enquanto o escamado grunhe e se debate, tentando se livrar de qualquer jeito.
Eles o empurram para dentro do camburão.

Em algum canto da cidade, uma japonesa bochechuda de pele escura acompanhada de sua amiga Konata assiste quando vários otakus pulam sobre um outro, impedindo-o de se suicidar.

- Me deixem morrer, me deixem morrer! O Pump não funciona, nenhum computador liga nessa cidade, os mupys já estão começando a esquentar! Eu quero morrer! Deixem-me morrer!
- Alguém tira a kunai da mão dele!
- Gomu gomu no tirar kunai!
- Ouch!

Longe, no banheiro, um grupo se reúne em volta de um notebook.

- Vamo lá gente. Pela bateria, a gente só tem quarenta e cinco minutos. Dá pra assistir dois episódios de Cowboy Bebop ou uns quatro de Shin-Chan.
- Sim, sim! Shin-Chan! – Suando frio, o rapaz espera com entusiasmo pelo único remédio do seu vício.

Estão todos beirando a loucura.

Marmota acorda. Ele havia tido um sonho estranho. Ele estava por engano numa cidade cheia de nerds, e pra tentar escapar de lá havia tentado ludibriar o prefeito da cidade, convencendo-o de que tinha alguma coisa pra ele. O homem veio para o encontro armado e, num acesso de fúria, Marms atacou-o.
Por sorte, não deu tempo de ele atirar. A energia acabou e tudo ficou no mais absoluto escuro. Ele arrancou a arma da mão do cara e fugiu desesperadamente, deixando pra trás o pacote. Sonho estranho.

- Bom dia! – A voz alegre o pega de surpresa.
- Errr... Bom dia. Quem é você? – Marmota se senta, reparando que não faz idéia de onde está.

Ele estava dormindo num sofá. A sua frente, um homem claramente nerd está de avental, lavando pratos na cozinha.
O cara tem barba mal-feita. Cabelo comprido abaixo dos ombros, preso num rabo-de-cavalo. Duas franjas laterais de influência nipônica soltas a frente e óculos de aros redondos e lente grossa. Muito, muito nerd. Talvez não tenha sido um sonho, afinal.

- Eu sou o Gam, prazer. Eu tava passando na rua e tinha mó galera em volta de você.
- Gam, o cara que eu arranjava cartas pela internet?
- Isso, eu mesmo! Woodchuck, então? – É o codinome que Marmota usava para traficar cartas online. - Caramba, finalmente a gente se conheceu pessoalmente!
- Mas então... Você disse que me achou no meio da rua.
- É. Disseram que você caiu do terceiro andar numa caçamba cheia de lixo. Santa coincidência, ein? – Puta merda, não foi um sonho.
- E você quer que eu acredite nessa besteira?
- Eu também não acreditei muito não, mas fazer o quê? As vezes o povo exagera. Você tá vivo, cara. Isso que importa.
- Bom... É. – Parece um daqueles caras meio sussas. Essas pessoas deixam Marmota ligeiramente irritado. A mãe dele é assim, e apesar de amá-la, ele sempre se irritou com o jeito zen demais dela. Saudades da mãe.
- Mas e aí, como você chama? Woodchuck mesmo? – Gam pergunta enquanto seca o último prato.
- Oh, desculpe. Meu nome é Marms. Marmota.
- Marmota Marms?
- Marmota ou Marms.
- Ah, ok. Marmota será então.

Ele tira o avental. Sua roupa se resume a calças pretas e uma camisa havaiana. Ele se senta em frente ao computador, tentando ligá-lo em vão.

- Pô, a energia não voltou até agora. Tá assim desde o ano novo. Será uma espécie de bug do milênio, mas sem milênio? – O rapaz viaja.
- É, sei lá.
- Aliás, sua arma tá aí do lado, na cômoda. Tava junto com você, aí eu trouxe escondido.
- Ah, obrigado. – Marms vê a arma firulada do administrador, mas tem receio de pegá-la. – Você não quer pra você? Eu não acho que vá precisar mais.
- Pô, demorou! Valeu. – O cara pega a arma e a guarda na gaveta da cômoda. – Segurança nunca é demais, né?
- Bom... é.

Marmota se levanta.

- Acho que eu vou embora agora.
- Pô cara, vai fazer o quê em casa sem energia? Fica aí, vamo jogar um pouco de Magic!
- Eu... Não tenho mais cartas, vendi tudo.
- Nossa, que triste. E eu só tenho um deck aqui. Bora jogar outra coisa. Banco Imobiliário, demorou?
- Pode ser...

Marmota tira os tênis e fica mais a vontade.
Ele vê os tênis do Gam perto da porta. São Nikes comuns. Pelo menos ele não usa All Star, como a maioria dos malditos nerds dessa cidade.

Décima Fase
Um conto de amizade

Nadando furiosamente com sua roupa de borracha em meio a águas cada vez mais turbulentas, Joseph procura pelo seu jegue.
Ele resolve mergulhar, e assim o faz.
A água se separa em cinco caminhos. São canos idênticos que devem facilitar o tratamento. Ele ia pelo segundo quando vê que o terceiro está ligeiramente amassado. Torcendo para que aquilo tenha sido causado pelo seu jegue, ele escolhe o terceiro cano e deixa-se levar por ele.

A roupa hermeticamente fechada possui um pequeno cilindro de ar nas costas, mas Joseph não faz idéia de quanto tempo aquela garrafinha pode agüentar.
Ele nada a favor da corrente, de forma a agilizar o processo e chegar logo ao seu destino.

Triste e desesperançado, o jegue chora. Já fazia um dia inteiro que ele estava ali, mas pra ele é como se tivesse sido uma eternidade.
A água golpeia repetidamente seu dolorido flanco, como se quisesse que ele saísse do caminho. Ele já teria saído há muito tempo se pudesse, mas não dá!
Se pudesse, ele já teria se matado e terminado esse sofrimento.
Há muito tempo que ele está preso nesta saída de cano. Mais tempo do que um jegue deveria suportar. A sua frente, uma queda livre até um maquinário esquisito que joga diversos ácidos na água. Talvez seja esse o fim de todo jegue, afinal?
Suas narinas feridas doíam e jorravam catarro na água semi tratada a cada vez que ele respirava.
Sempre que se debatia, tentando inutilmente dar coices na água ou se jogar para frente em direção ao caldeirão quente de tratamento, ele não conseguia sair do lugar. Ele estava literalmente entalado ali, e não havia nada que pudesse fazer.

Enquanto chorava, o jegue pensava no que havia deixado pra trás. Seu legado para o mundo e o que gostaria de ter feito, mas não deu tempo.
Gostaria de ter dado mais afeição ao seu amado dono. Gostaria de ter trabalhado mais firme, ter se tornado mais forte.
Gostaria de ter pastado mais, de forma a ajudar a mãe terra no processo de... Bom, ajudado de alguma forma.
Ele gostaria que todos os jegues percebessem mais rápido que ele que a vida uma hora acaba, e é preciso aproveitá-la e saber cultivar cada minuto.
É preciso amar as pessoas como se não houvesse amanhã.
Porque, se você parar pra pensar, na verdade não há.
O jegue se identificava com as gotas d’água que respingavam a sua volta. Identificava-se com um grão de areia no infinito da praia. O jegue via tudo isso junto com sua vida passando diante de seus olhos, quando braços firmes abraçaram seu pescoço.

Joseph finalmente havia alcançado seu grande companheiro. Abraçando-o firmemente e apoiando seus pés em grandes parafusos do cano, ele puxa o jegue com força.
Disposto a ajudá-lo a ajudar-se, o bicho firma-se e faz força para trás, para desentalar.
Juntos, eles conseguem.

Andando devagar e firmemente contra a forte corrente, Joseph puxa seu jegue pela rédea. Vencendo a força de litros e litros de dejetos tratados vindo na direção contrária, eles aos poucos conseguem atravessar o cano inteiro. E é um grande cano.
Praticamente sem fôlego, Joseph junta forças sabe-se lá de onde e puxa o jegue para fora do cano, nadando com ele para a superfície da correnteza.
Juntos, eles saem da água.

Naquele dia, poucos foram os que tiveram a honra de ver o que parecia ser um homem e seu jegue saindo da Estação de Reciclagem de Esgoto do bairro de Gunbounders. Não era só isso. Não era só um homem e um jegue, mas dois grandes amigos, cuja amizade ultrapassa barreiras da relação humano-animal e vence o impossível na grande luta pela vida.

Enquanto caminha de volta pra casa, Joseph passa por uma multidão depressiva de pessoas amontoada pelas ruas, mas não liga. Nada importa agora que ele está com seu melhor amigo. Ele abraça o jegue com um braço enquanto com o outro aponta para cima.

- Me diz, jegue. – Ele fala. – Me diz por que o céu é azul.

E assim terminam uma história que nada tem a ver com o resto da trama.
Absolutamente nada.

Décima-primeira Fase
Cazuza, bug fix e metal do mal

Galhards passa abaixado em frente a janela. Ela está fechada pelas persianas, mas um observador atento ainda poderia reparar no seu vulto se ele passasse de pé. E ele definitivamente não quer ser visto por observadores atentos. Ele quer fazê-los crer que hoje a prefeitura está vazia.
Abrindo com cuidado a porta para a recepção onde fica Grand Mama, ele vai agachado até ela.

- E aí, algum progresso?
- Eles disseram que estavam enviando especialistas para lá. Ainda pode levar um tempo.
- Puta que pariu! – Ele fala isso maneirando o tom de voz. – Aqueles incompetentes só estão indo pra lá agora? Porra, que saco. A gente ainda vai ficar um tempão aqui, pelo jeito.

Ele fala sem segundas intenções, mas Grand Mama dá um sorriso malicioso que ele não repara.

Eles não estão escondendo-se de uma multidão enfurecida de nerds irracionais que foram violentamente arrancados de seus jogos.
Pior.
Eles estão escondendo-se de um pequeno grupo de nerds plenamente racionais que vieram pedir esclarecimentos sobre a queda de energia e, quem sabe, aproveitar para discutir outros assuntos.

Galhards nunca teve paciência para esse tipo de gente racional, e com certeza não é hoje que ele acordou com saco para ouvi-los.
Sua cabeça está doendo por causa da pancada que ele levou de madrugada. Aquele maldito gerente do McDonalds o acertou em cheio com o pacote. Quando o cara foi embora, ele viu que era apenas uma caixa cheia de cocô de cachorro. O que aquele escroto dá pro cachorro comer que pesa tanto?

- Eles ainda estão lá fora?
- Sim. Ao que parece, eles trouxeram trakinas e refrigerante. Vão ficar ali o dia inteiro.
- Bosta! – E ele maneira o tom de voz novamente.

Um renomado especialista em manutenção de hidrelétricas nucleares tecla maniacamente o computador central da hidrelétrica nuclear de Super World, sem encontrar o problema.

Quando Blaze toma fôlego para avisá-lo de que talvez, e apenas talvez, o problema estivesse no grande cabo de suprimento de urânio gasoso que, arrebentado, vazava por sobre suas cabeças, Danilo o impede.

Intrigado, Blaze lança-lhe um olhar indagador.
Em resposta, Danilo lança-lhe um olhar explicativo de censura devorador de insucesso alheio.
Basicamente, seu olhar diz “Cala-te, prezado Blaze. Cala-te, pois hoje é o dia em que eu finalmente largaria este emprego humilhante e sairia em busca de um melhor. Mas não, não pude! E sabe por quê? Porque alguns malditos vândalos explodiram tudo e acabaram com o suprimento de energia da cidade. E agora a única coisa que me mantém vivo é a satisfação pessoal sádica que tenho ao observar a incompetência deste homem que não consegue enxergar o óbvio. Isso e saber que até eu faria um serviço melhor se fosse formado em manutenção de hidrelétricas nucleares. É isso, meu caro Blaze, que faz meu dia valer a pena. Por isso cala-te. Por favor, apenas cala-te.”
Infelizmente, Blaze nunca saberá disso.
Ele se pergunta o que diabos há de errado com Danilo pra fazer tantas caretas.

Enquanto isso, os corpos destes três homens silenciosamente sofrem modificações mutagênicas internas irreversíveis e provavelmente fatais. Mas nada disso é pior que toda a comida industrializada que eles já ingeriram e ainda vão ingerir no decorrer de suas vidas, por isso eles se mantêm impassivos.

- Já tá de tarde e o tal do homem-lagartixa ainda não apareceu. Já não é hora de assumir que ele foi pego? – Cox grita para Fye.

Uma jaca o atinge na cabeça.

- Homem-lagartixa é sua mãe. – Diz Miaka, revoltada com o ultraje.
- Tecnicamente... – O homem se explica a seu modo. – Minha mãe seria uma mulher-lagartixa.

Outra jaca.

- Caramba, de onde você tirou tanta jaca!? – Ele diz com a mão na cabeça.
- De uma jaqueira, idiota.

E assim Cox conclui que é melhor ficar quieto. Logo depois se pergunta se ainda tem alguma chance com a moça, mas chega a óbvia conclusão de que tem sim. Ele sempre chega nessa conclusão.

Fye, que em nada prestava atenção até agora, resolve cantar para passar o tempo.

- Disparo contra o Sol. – Cantar Cazuza. - Sou forte, sou por acaso. Minha metralhadora é cheia de mágoas. Eu sou um cara! – Ele se levanta. Está usando um graveto como microfone. - Cansado de correr na direção contrária. Sem pódio de chegada ou beijo de namorada... Eu sou mais um cara! – Essa frase final foi com um sotaque carioca que definitivamente não é natural.

Animado com a súbita insanidade do ‘cara’, Cox também entra na brincadeira.

- Mas se você achar que eu to derrotado, saiba que ainda estão rolando os dados... Porque o tempo, o tempo não para! – E esse coro é um dueto. - Dias sim, dias não eu vou sobrevivendo sem um arranhão da caridade de quem me detestaaaaaa!

Miaka também resolve cantar.

- A tua piscina tá cheia de ratos. Tuas idéias não correspondem aos fatos. O tempo não para! – Ela se anima e balança como se estivesse num palco. - Eu vejo o futuro repetir o passado. Eu vejo um museu de grandes novidades. O tempo não para! Não paaara não! Não para!

Se fosse no Maracanã, ele estaria tremendo agora.

E assim cantando, eles passam o tempo.

Na casa de Dok, uma competição emocionante toma conta. Mais que uma simples competição, é uma batalha de mentes. Como verdadeiros gladiadores numa arena, quatro mentes atacaram e defenderam-se umas das outras para ver quem seria a última de pé. E agora só sobravam duas.

- Jaspion. – Dok procede.
- Tokusatsu! – Há, essa foi fácil.
- Power Rangers. – Isso provavelmente levará a uma corrente de cores.
- Rosa! – Sim, como previsto.

O jogo das palavras é simples. Você deve dizer uma palavra relacionada a dita pelo jogador anterior, sem repetir. Quem falhar ou demorar muito é eliminado.

- Azul.
- Verde!
- Vermelho.
- Sangue! – Vamos colocar um pouco de destruição aqui!
- Morte.
- Destruição!
- Pandemônio!
- METAAAAAL DO MAAAAAAAAAAL! – Gatts se anima.
- YEAH!! – Todos se animam.

Eles se levantam e freneticamente se põem a tocar seus instrumentos como se eles realmente estivessem com eles.
Após um aterrador solo de air guitar, Dok se senta novamente. Ele está totalmente exausto.

- Bom, então vamos considerar isso um empate.
- Esse... é... o... melhor... JOGO DAS PALAVRAS EVER! – Extasiado, Alejandro ainda está tocando sua air bateria como um tr00 astro do rock. Suas curtas mechas tremem ao sabor da inércia enquanto ele chacoalha a cabeça de um lado a outro, disposto a manter o cérebro fora do lugar.
- Alê, chega. – Pirado tenta fazer algo a respeito. – Chega, Alê. Chega! – Ele dá um tapa nas baquetas imaginárias do argentino, derrubando-as.
- Ah, desculpe. – Totalmente encharcado de suor da cabeça aos pés, Alejandro para. Ele não se dá muito bem com suas glândulas sudoríparas e desde pequeno teve de andar com camisas reservas por causa disso.

- Mas então, Dok. O Justiceiro do Deserto é mesmo tão ninja quanto dizem? – Após parar de rir, Gatts finalmente consegue juntar fôlego para perguntar. Sua voz é melodiosa e absolutamente ritmada mesmo quando está falando normalmente, e isso sempre deixa todos os outros integrantes da banda maravilhados.
- Não, definitivamente não. O cara só é absurdamente cagado em quase tudo o que faz.
- Então você quer dizer que o grande mito da cidade é só um grande sortudo? – Pergunta Gatts.
- Bom... é. – Dok responde.
- Mas cara, a sorte não é um elemento totalmente aleatório? – Pergunta Pirado.
- Se é que existe esse negócio de sorte, sim.
- E como uma pessoa poderia dominar um elemento aleatório que a gente nem sabe se existe?
- Ué, vai ver ele não domina. – Confuso, mas acompanhando muito bem a linha de raciocínio, Dok prossegue – Vai ver é a sorte que domina ele. Vai ver existe mesmo uma força superior que rege o universo e está ao lado de uns e contra outros...

Um breve momento de silêncio e em seguida todos riem da conclusão.

- Nãaa! – Eles falam quase ao mesmo tempo, totalmente sem querer.
- Uma coisa é certa, caras. – Alejandro diz. – Eu sou fã desse cara!

Longe dali, uma mulher peituda começa a ter alucinações no elevador.

Décima-segunda Fase
Um nerd cheio de All Star

- Por quê?
- Ué, porque eu gosto de Cazuza.
- Não, não isso.
- Por que o quê, então?
- Por que acabar com a energia da cidade? Ninguém ganha nada com isso.
- Ah, entendi.
- E aí, por quê?
- Nem,
- Nem?
- Nem te conto. Hehehehehehehehehe.

Miaka ri também. Mais da risada do Fye do que da piada ridícula.

Num apartamento do centrão, Gam anda pela sala. Marmota já foi embora e, sem companhia nem eletricidade, não lhe sobrou muito o que fazer além de andar pela sala.
Subitamente, ele tem uma boa idéia.

- Ih, olha só! Tive uma boa idéia!

Gam trabalha num ramo exclusivo de Super World. Uso e revenda de sapatos. Também conhecido como uso e revenda de All Stars.
Em uma cidade onde a preferência por tênis velhos e usados é unânime, a descoberta da revenda de tênis desgastados como negócio foi um tremendo sucesso.
Empresas e fábricas de tênis tentaram de tudo para produzir ou modificar seus tênis de forma a que ficassem de aspecto mais usado possível, mas nunca alcançavam resultados aceitáveis. O gosto por tênis realmente usados do modo tradicional continuava. A tradição vencendo a modernidade.
A tarefa de desgastar tênis e revendê-los a preços maiores restou para homens audaciosos. Pessoas dispostas a se arriscar num negócio não oficial e sem remuneração garantida.
Gam foi um dos pioneiros.

Como esperado, o serviço fez sucesso. Agora ele é riquíssimo e patrocinado pela Nike.
A tarefa de desgastar tênis é uma arte. Neste momento ele está com um All Star de cada cor, e anda de um lado para outro para amolecê-los. Pedidos são normais nesse ramo, e este cliente pediu especificamente por um esquerdo azul e um direito verde. Uma mancha de suco de goiaba na parte externa do verde e um broche sem significado aparente na parte externa do azul. Provavelmente era um otaku.
Logo ele tiraria os tênis para se sentar e pensar na idéia que acabou de ter.
O chato desse trabalho é que os pés de Gam são enormes e ele geralmente tem que usar tênis menores que o seu número. É ótimo para o serviço, mas horrível para ele.

- Puxa, foi difícil fazer um bom suco de goiaba.

Reparando que esses devaneios logo o farão esquecer a idéia, Gam decide anotá-la. Infelizmente, usar o Bloco de Notas agora é impossível, pois não há energia para ligar o computador. Ele precisa de uma caneta.

- Nós chamamos isso de “banning account”. – Diz Fê, o ogro asiático.

Lizard quer responder, mas no momento sua cabeça está ocupada sendo enfiada num tanque de água gelada.
Quando ele já está prestes a perder a consciência por falta de oxigênio, o GM Buda o puxa novamente.

- De onde eu vim, chamavam isso simplesmente de tortura.
- Ah, não a água! A água é tortura mesmo, rs. Eu tava falando do que a gente vai fazer depois.

Mais alguns segundos sob a água.

- O processo é simples. Nós apagamos toda a sua memória e colocamos em um chip. Depois o...

Água.
Dessa vez dura pouco. Ele quase imediatamente é puxado pra cima.

-... Tava falando com ele, pô!
- Desculpe.
- Afunda quando eu terminar de falar, ok?
- Ok.
- Então, como eu dizia... Depois de uma semana vagando por aí desmemoriado, a gente te procura.

Algum tempo sob a água.

- Se a gente te achar, a gente devolve a memória pra você e tu tá liberado.
- Se?
- É, as vezes acontece de você ter ido tão longe que a gente não acha mais.

Afunda de novo. Lizard experimenta espernear e se debater um pouco, mas é inútil.

- Lembra daquele baiano de cabeça quadrada? – Diz Buda.
- Hehe, pode crer. A gente nunca achou ele. Até hoje ele ainda deve negar que é baiano.
- E tem o nego com cara de homem das cavernas também. A gente não achou ele.
- É mesmo. Ele ainda deve estar sem memória. – Buda diz com um sorriso.

Lizard tem que dar um jeito de sair daqui e avisar Fye sobre esse procedimento. Essa atrocidade é totalmente desconhecida pela sociedade e precisa ser interrompida.
Mais água. Dessa vez ele perde a consciência.

O celular de Dok toca. No visor lê-se “número confidencial”.
- Alô.
- Holla.
- Quem é?
- Yo soy el paraguaio y fui contratado para matar-te!
- Para quê?
- Paraguaio!
- Oh...
- Hehe, zueira. Você está em segurança, jovem Dok.
- AH, e ae! – Dok finalmente reconhece a voz do Justiceiro do Deserto.
- Já é a quinta vez que eu tento te ligar! Seu celular tá sempre desligado? – Isso foi, de certo modo, heróico.
- Bom... Ele tava carregando. – Dok tenta disfarçar seu desligamento com uma mentira.
- Estamos sem eletricidade, Dok. – Uma mentira falha.
- Ah, droga...
- Eu preciso que você encontre um amigo meu. Ele precisa da ajuda de um homem e não quer encontrá-lo sozinho. Parece que você já o conhece. Chama-se Marmota. Pode fazer isso?
- Bom... Posso. É, posso sim.

O endereço lhe é passado e o Justiceiro desliga o celular em seguida.

- Quem era, Dok? – Pergunta o baterista argentino.
- El paraguaio.
- Ein?
- Era o Justiceiro. Ele me passou esse endereço – Dok mostrou o papel onde o anotou. – e disse pra eu ir lá encontrar o Marmota. Querem ir?

Eles querem.

Décima-terceira Fase
No núcleo da cidade.

Não adianta. Não importa o quanto ele procura e desafie o destino, parece que não há uma caneta sequer no apartamento. Por fim, ele decide comprá-la.

Para sair, ele usa seus tênis normais. Gam não costuma sair com os All Star encomendados, pois os acha extremamente desconfortáveis.
Ao calçar seus tênis pretos absolutamente comuns, ele sente o prazer de pisar sobre uma dúzia de amortecedores e sistemas de puro conforto aeróbico cuidadosamente calculados por dezenas de especialistas. Por um instante ele se lembra da fissura que seu pai tem por tênis e sapatos bons e percebe que ele sempre teve razão.
E sai de casa se perguntando o que leva esse monte de nerds a usar All Star.

- Tão espertos, mas tão burros.

Ele vai até a banca mais próxima. Super World possui as maiores bancas do país, pois mangás, revistas eróticas e de games são vendidos que nem água.

Ele resolve comprar uma cruzadinha e uma bic.

Super World tem seu próprio distrito. Apesar de estarem no território de Minas Gerais, os nerds de Super World não são mineiros.
A um pedido formal da futura população de Super World e vários homens influentes movendo palitinhos, foi criado um distrito especial para a cidade. Assim como Brasília e o Distrito Federal, seria Super World e o Distrito Superbo. Todos concordam que Superbo soa bem gay, mas o que interessa é o nome completo da cidade:
Super Mario World – DS

O terreno escolhido para a criação de Super World foi uma cidade decadente do interior de Minas chamada Olímpio de Noronha. Antes de se transformar na grande cidade que é agora, Olímpio não passava de um aglomerado de nove quadras. Tinha várias casas, uma igreja, uma praça, um cemitério, várias vacas, nenhum carro e algumas pessoas. Super World dominou todo o território de Olímpio, área essa que passou a ser chamada de Centrão. E cresceu muito para os arredores, obrigando as vacas a se mudarem pra mais longe.

O primeiro prédio de Super World não era pra ter nada de especial.
Era um grande e chato prédio cinza de quinze andares, dois elevadores e seis apartamentos por andar. Sendo chato no sentido entediante e cansativo, e não achatado e moderno.
O nome do prédio também não teria nada de especial. Ele iria chamar-se “La Picadilly”, por capricho de algum empresário fresco e nada mais.

O que acidentalmente tornou-o especial foi o terreno em que foi construído.

O antigo cemitério de Olímpio de Noronha.
Não que o prédio seja assombrado ou mórbido, nada disso. É que antes de ser um cemitério, aquele mesmo terreno, assim como todos os outros terrenos de Olímpio, já foi pasto de vacas.

O incalculável tempo sendo cagado e depois atochado com cadáveres tornou o terreno de alguma forma mole demais.
Depois de terminado, houve uma inconveniente chuva torrencial e um pedaço da fundação afundou, deixando o prédio quarenta e cinco graus torto pra todo o sempre.

A partir deste evento, o prédio ficou conhecido pelos moradores do Centrão como “La Pica Torta”.

É na sua entrada que Dok, Pirado, Gatts e Alê encontram Marmota.

- E aí, Marms!
- Ei, Dok.

Dok apresenta toda a banda para o velho amigo.

- Então, o que a gente veio fazer aqui? – Ele pergunta em seguida.
- O Justiceiro disse que pode me ajudar a sair da cidade.
- Legal, legal. – Dok não acha tão legal, mas quer parecer simpático.
- Ele disse que o adm se trata de um tr00 nerd encarnado.
- Ein?
- Disse que a honra nerd dele está acima de qualquer coisa, e se eu derrota-lo em seu próprio mundo, ele talvez me liberte.
- Seu próprio mundo? Como assim?
- World of Warcraft.

Raios de suspense caem sobre o Centrão.

- WoW! – Pirado lembra da sigla do jogo. – Eu jogo isso. Mas não tá sem energia?
- Não, já voltou. Bora?
- Bora!

Eles entram no prédio.
A inclinação acentuada do edifício formou um pequeno degrau torto na entrada. Ao entrarem, eles se sentem ligeiramente tontos.
É como se tudo estivesse meio torto e mal-apoiado. Aliás, é exatamente isso.

Eles tocam o interfone. Ninguém atende.

Ignorando os bons modos convencionais, Marmota simplesmente passa pela grade aberta.
Os outros o seguem.

Eles vão entrando no elevador de funcionários, pois o outro parece apagado e fora de serviço.

- E o que esse prédio tem a ver com jogar World of Warcraft? – Pergunta Gatts.
- Sei lá, deve ter uma lan house aqui. – Marmota também não faz muita idéia do que está fazendo aqui em “La Pica Torta”.

Uma mão firme e forte segura a porta do elevador antes que ela feche.

- Vai entrar? – Pergunta Dok.

É um rapaz bombado, irremediavelmente sorridente e de traços japoneses. Ele é todo musculoso, mas a sua mão esquerda por algum motivo parece mais firme e forte que a direita.

- Sai daí, ô. O prédio é todo torto e os elevadores nunca funcionam direito. Ninguém usa essas bosta.

Ele fala de um jeito peculiar. Como se singulares e plurais se confundissem numa bem organizada orgia de palavras. Algo no sotaque, talvez?

- Eu vim aqui procurar um tal de Amorim. Você parece japonês. Por acaso é você? – Marmota pergunta.
- Sim, sim. Toupeira?
- Marmota...
- Marmota! Bora lá na minha goma. O cara mandou eu te mostrar umas coisa.

Eles o seguem em direção a escada torta. Enquanto sobe com incrível facilidade pelos degraus incomuns, Amorim vai repetindo a bobeira que acabou de falar em diferentes graus de velocidade e rindo de si mesmo.

- Minha goma. Goma. Go-ma. Hahahahahahaahaha!

Indeciso, Gam passa o dedo pelas canetas a mostra.

- Vem cá, qual cor eu escolho?
- Isso é relativo, senhor. A preta é ótima para anotações básicas, que não precisem de muita atenção. A azul chama mais atenção que a preta, mas não tanta atenção para atrair olhudos. É ideal para listas de compras ou provas de vestibular. A vermelha é indicada para correções e anotações urgentes. Qual o propósito da sua caneta?
- Bom, é pra anotar uma idéia.
- Uma boa idéia, uma idéia mais ou menos ou uma idéia excelente?
- Uma idéia excelente.
- Bom, nesse caso eu posso indicar a caneta verde. É uma cor que combina com boas idéias, além de não ser tão comum quanto preto e azul, logo sempre irá chamar atenção.
- Perfeito! Puxa, muito obrigado.
- Não há de quê, senhor. São dois reais pela caneta mais três pela revista.

O rapaz recebe o dinheiro e Gam parte com a sua mercadoria.

Na Pica Torta, alguém está ouvindo Red Hot Chilli Peppers em alto e bom som. A música ecoa no prédio inteiro.
No terceiro andar, Dok avista um rosto familiar passando pelos corredores.
Surpreso, ele deixa de acompanhar seus amigos que continuam escada acima e parte atrás do homem para abordá-lo. Por um infortúnio do destino, ele é totalmente desacostumado com terrenos perigosamente inclinados e pisa em falso. Dok desce o corredor rolando. Rolando e rindo.
Ele não consegue deixar de pensar que um dia poderá dizer aos seus filhos “Eu caí na Pica Torta” sem ter o orgulho ferido.

O estardalhaço da queda alertou o homem que ele visava, que correu corredor abaixo.
Assim como Amorim, Preto também demonstrou grande habilidade em se locomover no terreno inclinado, provavelmente por morar aqui há um bom tempo.
Dok vai capotando atrás dele. Mais tarde ele pensaria que teria sido muito mais eficiente ter pego um carpete de boas-vindas de um dos apartamentos, virado-o e escorregado nele, mas aí já seria tarde.

Durante toda a sua vida Superior (como é chamado o derivado de Super World), Preto esteve se escondendo dos GMs.
Com medo da estrutura instável e improvável que é a Pica Torta, as autoridades não costumam se atrever a entrar ali. Por esse motivo, esse edifício é o lar de vários trambiqueiros e foragidos da lei.
Como não podia deixar de ser, os GMs circulam por volta da Pica Torta, sempre a espreita pro caso de um procurado conhecido sair de lá. Seja pra comprar pão, seja pra visitar alguém.
Numa verdadeira batalha de gato e rato, as autoridades e os foragidos elaboram mil táticas e armadilhas para pegar ou escapar do oponente. É por essa razão que Preto acredita que aquele nerd franzino e narigudo na verdade foi contratado para pegá-lo.

Ele chega ao fim do corredor. Há um apartamento de cada lado.
Ele tenta entrar em um.
Trancado.
Ele tenta o outro.
Em meio a gritos de um nerd bobo assustado, ele passa correndo pela sala e vira no corredor, sumindo no interior do apartamento.

Dok coloca o corpo pra dentro do apartamento, constrangido.
- Com licença?

O nerd, que não cogitou na possibilidade de levantar do sofá, ainda está gritando.
- Pô meu! Sai da minha casa, meu! Cês entram assim do nada e vão achando que a casa é Contested Area? Isso aqui é privado, meu! Eu pago por essa porra!

Dok ri. O homem paga pela porra da Pica Torta. Hoje com certeza é um dia feliz.
Rindo e educadamente mandando o nerd fedido para a puta que pariu, Dok invade o apartamento.

Apoiando-se nos móveis que foram engenhosamente grudados ao chão e equilibrando-se como pode, ele chega no corredor.

Subitamente, vindo das sombras, um Dr. Hibbert de bronze o ataca.
Uma risada cansada toca.

Décima-quarta Fase
For the Horde!

- Calma aí, moça! A gente já vai tirar você daí!
- Tá bom.

A voz de Sahra está seca e fraca. Ela precisa de água, um banheiro, comida, descanso e talvez alguma terapia ou procedimento pós-traumático.

Dando-lhe a firme mão esquerda, o japonês a puxa. O elevador parou entre os andares sete e oito, e agora Sahra está fazendo a arriscada travessia para o corredor.

- Pô moça, você não sabe que não se pode usar elevador aqui na Pica?
- Ele... Funcionou pra subir. Achei que não tinha problema.
- É pra descer que eles sempre travam. Tipo, não sei por quê.

Pirado, que junto ao resto da banda ajuda a acolher a moça, tem uma explicação.

- Provavelmente o sistema do elevador puxa os cabos pra subir, mas pra descer ele vai soltando aos poucos, confiando apenas na força da gravidade pra ele se mover. Com a inclinação do prédio, é fácil pro elevador enganchar em algum lugar durante a descida. Pior ainda, se o sistema for precário e antigo, o maquinário vai continuar liberando os cabos. Isso significa que, quando o elevador desenganchar, ele vai despencar com tudo até onde os cabos estiverem livres.

Ele toma uma pedalada de Marmota.

- Nunca mais faça isso.

Ele odeia explicações técnicas, odeia saber como as coisas funcionam quando elas já não estão mais tão próximas. Odeia toda essa ânsia por conhecimento que emana dessa cidade.

Porém, com efeito, o elevador despenca.

Diante de tamanha sorte por ter sido resgatada a tempo e tamanho cagaço por ter sido segundos antes do elevador desenganchar, Sahra ri num estado de quase insanidade.

Ela se deixa cair pra trás, mas Alejandro a segura. Aparando a moça e examinando minuciosamente seus enormes seios, ele mantém a expressão séria enquanto tenta puxar assunto.

- Então... Você é da Libertação?
- Hahahahahaa... Talvez sim, talvez não. Quem pode saber? – Ela não acredita que disse isso.

- Vamo levando ela lá pra goma. Pra goma, haha. A gente dá um lanchinho pra ela e fica tudo sossegado. Sossegaaado. Sossego, sossegão.

Marmota pergunta-se seriamente se o rapaz está bêbado ou drogado. Então, lembrando-se de que não tem escrúpulos, resolve perguntar seriamente ao próprio.

- Ei, você ta bêbado?
- Uuuuuhnão!
- Drogado?
- Uuuuuhnão! – Ele dá uma breve sacudida no corpo quando fala assim.
- Santo Deus, você é assim o tempo inteiro?
- Quase sempre, quase sempre. Vamos subindo.

A tropeços e solavancos, eles chegam no apartamento de Amorim no décimo andar.
Quando entram no apartamento, Sahra desmaia devido a suas péssimas condições.

A decoração é tipicamente solteira. Não há sujeira, demonstrando que se trata de um rapaz asseado. Porém, no teto e paredes se espalham pôsteres e cartazes variando entre o erótico e o explicitamente pornográfico.
Num lampejo de sagacidade, Gatts formula uma teoria sobre o motivo de ele ter a mão esquerda mais firme e forte que a outra.
- Você é canhoto?
- Sim, por quê?
- Nada, nada... – Teoria confirmada. Ele usa bastante aquela mão. Melhor tomar cuidado onde toca.

Amorim joga no chão umas revistas que estavam na cadeira e se senta no computador. O típico sonzinho que costuma tocar quando o Windows é aberto foi trocado por uma voz incrivelmente sensual dizendo “Try me harder.”
O wallpaper se trata de uma mulher abusivamente gostosa elaborando esquemas indizíveis com ferramentas jamais vistas antes.

Sahra começa a acordar. Com grande pesar no coração, Marmota dá-lhe um golpe na nuca, devolvendo-a ao mundo dos sonhos.
Os caras da banda o encaram com horror, mas nada dizem. Foi mesmo melhor assim, por respeito a menina.
Ou isso ou eles teriam que ficar o tempo inteiro disfarçando com a mão no bolso.

Amorim, que nada disso viu, agora está abrindo o jogo World of Warcraft.

- Tem mais computadores lá no quarto. Dá pra mais dois jogarem.

Pirado e Marmota, os dois que já jogaram WoW e possuem contas no jogo, ocupam os computadores.
Enquanto isso, Alejandro e Gatts levam a menina desmaiada ao banheiro, e resolvem que é melhor trancá-la lá até tudo isso acabar. Enquanto tranca a porta por fora, Gatts torce para que a mulher não morra lá dentro.

O envolvente e alto som de tambores épicos ecoa em todo o apartamento. Duas, três vezes. Os jogos foram abertos.
Envoltos em pura adrenalina, os jogadores digitam suas contas e senhas esperando ansiosamente pelo grande momento em que lutarão contra o adm.

Marmota é um belo e gracioso elfo. Suas delicadas orelhas enormes saem de seu capacete roxo púrpura. Seus olhos verde turquesa brilham sob o elmo, realçando suas longas e graciosas sobrancelhas.
Com uma armadura épica que varia do azul-bebê extremamente feminino ao roxo brilhante acima da média e um gigantesco machado igualmente brilhante, ele se sente bem por estar em casa.

Caso não fosse apenas um jogo 3D on-line, ele preencheria seus pulmões com ares de nostalgia. Como é apenas um jogo 3D on-line, ele digita “/dance” e se contenta em remexer e rebolar ao som de um teleporte.
Teleporte?

Pirado está conectado. Ele também é um belo e gracioso elfo de bundinha empinada e curvas delicadas. Porém, seus assustadores poderes de sacerdote das trevas o transformaram num ser inteiramente negro e estiloso, escondendo um pouco da viadagem de seu personagem.

Marmota é o oposto. Um paladino iluminado da mais linda e poderosa aura que espalha a justiça divina por aí com o seu machadão. Ah, ele se lembra de como eram bons os tempos em que espalhava justiça.

- Hora de espalhar justiça! – A janelinha aparece acima de seu paladino brilhante.
- lol! primeiro vamo achar o amorim. – Pirado não usa acentos nem letras maiúsculas para digitar. Ele chama-as de “malditas frescuras ortográficas.”

- Ei, Amorim. – No mundo material, Pirado chama pelo outro.
- Oi?
- Qual seu nick?
- Amorosso666!
- Certo... – Ele já viu nicks piores. Isso não o impressiona.

Ainda no mundo material, Dok está se defendendo como pode dos golpes da estátua de bronze do Dr. Hibbert.

Hibbert é um personagem da série Simpsons. Um doutor inteligente que ri por qualquer coisa. Esta estatueta de bronze de quinze centímetros foi um brinde de certa empresa de fast-food por certa época.
Ao pressionar um botão no pedestal da estatueta, ela dá uma risada cansada. Gravação direta dos episódios de Simpsons.

Dok já cansou da risada e já cansou de apanhar.
Ele não pode usar seus dotes de capoeira neste terreno inclinado que o deixa em total desvantagem. Seus braços doem muito de tanto que ele tenta defender as pancadas.

Com raiva depois de tanto apanhar para o homem que deveria estar ajudando-o, ele dá uma joelhada precisa e poderosa no fígado do oponente.
Qualquer outra pessoa teria caído ao tentar este golpe num terreno tão inclinado e liso, mas os joelhos, costas e pés tortos de Dok provaram-se incrivelmente úteis e bem adaptados a suposta desvantagem. Pena ele só ter reparado agora.

Preto cai no chão e rola até a parede mais baixa.
Dok se aproxima dele escorregando com cuidado.

- Por que você me bateu, porra?
- Vocês não vão me pegar! Nunca! – Ele tenta se levantar, mas Dok dá-lhe uma joelhada no nariz que o convence a ficar por ali mesmo.
- Desculpe, foi automático. – Ele esconde o riso, pois no fundo gostou um bocado disso.
- Caramba, era só um aim hack! E daí? Todo mundo usa! Você quer deletar minha conta? É matsqs, pode ir lá. Mas não me leva!
- Do que você ta falando?
- Gunbound, caralho!
- Desculpe, é que eu não jogo Gunbound.
- Ein?
- E não vou te pegar por usar hack, apesar de ser coisa de fracos e incapazes.
- Ah, não?
- Não.
- Então você não é um GM?
- Porra, eu tenho cara de GM pra você?!
- Sei lá, porra! Eles fazem de tudo, esses cuzão. – Engraçado, ele também confunde singulares com plurais. Deve ser coisa do povo do Centrão.

Dok ajuda o homem a se levantar.
- Então... O que você sabe sobre o lote das mulheres?

Preto pára, estático. Uma gota de suor escorre por sua têmpora e suas pupilas dilatam diante da pergunta.
Com uma calma apavorante ou apavorada, ele fala.

- Então é por isso? É isso que você quer?
- Isso. Eu queria saber, porque...

Dok não continua. Num surto de puro desespero, o cara correu e se jogou pela janela inferior do apartamento.
Estupefato, ele encara a vidraça quebrada. Automaticamente começa a calcular a distância aproximada que o cara estava do chão, tendo ele pulado do terceiro andar de um prédio inclinado 45 graus a seu favor.

- Ele pulou de frente. Não vai sobreviver.

Ele vai até a janela e olha.

Vinte-e-quatro horas por dia sob o perigo de toneladas de concreto inclinadas sobre seu telhado, está uma casinha de madeira.
A frente singela possui uma porta lisa e duas janelinhas.
No parapeito das janelinhas, florezinhas coloridas se esticam.

A casinha diminuiu consideravelmente a queda. Preto caiu rolando habilidosamente sobre seu telhado e em seguida pulou no chão, correndo para se entregar aos GMs que estavam a paisana do outro lado da rua.

Desanimado, Dok liga para Alejandro para encontrar-se com a banda de novo.

Décima-quinta Fase
O poder indiscutível do Japão

O mestre ninja ensina seus discípulos. Eles estavam socando com firmeza e garra, mas é necessária postura para um golpe perfeito.

- Postura! Encontrem seu eixo e mantenham-se nele! É como um prédio. Se construírem um prédio e ele ficar torto, o que é que fazem?
- Eu não sei, sensei... Dão um apelido bobo pra ele?
- NÃO! Eles derrubam o prédio!

Com um empurrão fraco no ombro do discípulo, o garoto cai.

- Não deixe seu prédio cair. Tenha eixo!

Em outro país, outro estado, outra cidade, um gigantesco trator com uma bola de chumbo ocupa a rua inteira.
- É isso aí, galera! Todo mundo evacuando, vamo lá! A gente finalmente conseguiu a ordem de demolição dessa porcaria de prédio. Vocês têm trinta minutos pra deixar o edifício. Eu repito, trinta minutos! – O GM grita pelo mega-fone do camburão.

Enquanto nerds desesperados saem correndo do prédio, um verdadeiro batalhão de GMs a postos os segura e algema, um a um. Quando tudo acabar, eles verificarão quais têm contas a pagar para com a justiça e soltarão os outros. A operação “Limpa Pica” está sendo um sucesso.

Fé, o monstro bangladeshiano, assiste a operação de longe com os braços cruzados. Tudo foi idéia dele e está correndo nos eixos. Eles prenderão todos os foragidos que se abrigavam aqui e, de quebra, demolirão o edifício perigoso.
Ele ri maquiavelicamente por dentro. Por fora, quem observá-lo verá apenas um cabeludo com um sorriso singelo e o olhar de quem tem sede de sangue, além da roupa apertada.

O javali negro das savanas de Durotar caminha majestosamente por entre seus inferiores. Seu absolutamente superior nível 4 e sua cor estilosa o faz o javali mais poderoso dessas bandas.
Ele bem sabe que os novatos gostam de atacar os javalis negros por se sentirem mais fortes assim. Mas este é um cara confiante. Cada byte de sua inteligência artificial espera pelo dia em que surgirá um novato para lhe desafiar. Ele o derrotará após uma batalha épica e isso o tornará ainda mais forte.

E então, antes que ele pudesse calcular as matrizes do acontecimento, todos os seus sonhos e esperanças são despedaçados por vários megapixels de pura justiça.

Marmota levanta novamente seu machado sanguinário, satisfeito com essa nova vitória.

- Lol, matei o porco.
- ele tava no nivel quatro e voce ta no setenta... claro que você matou o porco.
- Foda-se. Eu só queria ver se o machado ainda tava funcionando.
- sei... mas entao... era aqui mesmo que a gente tinha que encontrar o amorim?
- Aham. Com certeza é aqui.
- qual era mesmo o nick dele?
- Amorosso666.
- ok, vou falar com ele.

Por meio do antigo, mas sempre revolucionário sistema de mensagens privadas, Pirado se comunica com Amorim.

- e ai, falta muito?
- véio, tô chegando! pronto, tô atrás de vocês!

De fato, um novo personagem está descendo dos céus. Montado numa imponente Fênix negra, ele dá uma manobra aérea antes de pousar. Em seus equipamentos de ombro estão penduradas cabeças de diversas vítimas. Em sua cintura, um cinto dourado chama muita a atenção, entrando em contraste com a prata de todo o resto. Sua espada gigantesca nas costas é, em parte, o que o ajudou a ter tantos equipamentos absurdamente lendários.
Quando ele pousa a Fênix some de uma hora pra outra, deixando-o cair de pé.

- LOL! Onde você conseguiu essa Dark Mystic Phoenix?
- dropei do GM, lol.

O termo “dropar”, muito usado por jogadores brasileiros em diversos jogos on-line, deriva de “drop”, um verbo inglês. “Drop”, ao pé da letra, significa “derrubar”.
Na maioria dos jogos, quando você derrota um inimigo e o seu corpo inerte tomba ao chão, ele dropa diversos itens (chamados de loot) que agora são seus por direito.
Não é sempre que um jogador dropa loot. Muito menos um GM, que é o poderoso moderador do jogo, cujos atributos deveriam ser maiores do que o de qualquer jogador.
Diferente de Super World, em jogos a sigla GM significa Game Máster.

- voce matou um gm? – Pergunta Pirado, o tr00 metal sacerdote negro das trevas.
- hoje, ainda não. esse que dropou a phoenix foi mês passado, véio!
- Então o adm não vai ser problema, né?
- véi, o adm comanda o jogo. ele eh tipo, deus, entendeu? se ele resolver apagar nossa conta, fode tudo. a gente tem que pegar ele de surpresa, véio.
- Sei...

Uma batalha intensa e cheia de reviravoltas os espera. Será que nossos jogadores agüentarão o tranco? Será que eles passarão vivos pelo seu primeiro obstáculo, o terrível monstro do lag?
Isso saberemos no próximo capítulo.

Por hora, concentremo-nos em Danilo e Blaze, os ex-guardas da usina nuclear.
Depois que o conserto finalmente se efetuou, eles imediatamente pediram demissão. Não agüentariam sequer um minuto a mais naquele emprego degradante.
Agora eles são guardas da delegacia de segurança máxima dos GMs.
Sempre ocupados espalhando a moral e o terror por aí com suas roupas coladas e armas de destruição suprema, os GMs não tem tempo para ficar parados. Isso eles deixam para calouros com um histórico limpo e confiável.

Como se por uma incrível coincidência arquitetada pelo maldito senhor do destino ou um golpe de azar do tipo com a chance de um em quinhentos trilhões, hoje Lizard irá escapar da delegacia.

Suas mãos escamosas pouco a pouco vão escorregando pelas algemas. Ele tem que conseguir logo, ou será tarde demais. Dois GMs estão levando-o a câmara de banning account, onde apagarão sua memória e deixarão um backup não muito confiável num chip não muito bem guardado.
Ele consegue livrar as mãos. Com um movimento repentino, ele se joga pra trás fazendo os enormes GMs que estavam segurando seus ombros baterem ombro a ombro.

Os dois GMs se viram, urram como tubarões e se preparam para a batalha.
Lizard tem uma idéia diferente. Ele se vira e corre da batalha como uma chita.
Ele corre muito rápido.
Vira no fim do corredor, empurra um faxineiro magrelo, salta sobre uma mesa, passa por uma porta, desvia de um pilar, vira, bate de cara na parede, vira de novo, passa por outra porta e não faz a menor idéia de onde se meteu, mas continua correndo.
Ele olha pra trás para ver se os dois estão ao seu encalço, e percebe que sim. E pior que isso, eles simplesmente estão atropelando todos os obstáculos que ele passou. Incluindo o faxineiro e a parede.

Ele continua correndo, torcendo para encontrar uma porta ou uma janela que o leve pra fora. Ele pensa que Fye e Miaka já devem ter desistido de o esperar e prosseguido com o plano. Mas mesmo assim ainda pretende encontrá-los se conseguir sair daqui.

- Ele não vem. Vamos prosseguir com o plano. – Fye se levanta e limpa a grama nas suas costas.
- E aí, qual é o plano com o qual nós vamos prosseguir? – Cox já estava de pé e totalmente conformado com o fato de, por bem ou por mal, fazer parte da gangue.
- Vamos encontrar nosso contato de dentro.
- E eu posso saber algum detalhe sobre o nosso contato de dentro?
- Não, lol.

E então eles começam a caminhada até a cidade.

Galhards liga o seu computador, satisfeito pela energia ter voltado e mais ainda pelos nerds terem ido embora.

- Mama? Você pode ir agora. Eu vou começar a trabalhar duro aqui.
- Ok, adm. – Mama já estava arrumando sua bolsa quando ele disse isso.

É batata. Nesse horário, quando nada potencialmente importante acontece na prefeitura, o administrador começa a jogatina de seus MMORPG favoritos que durará o fim do dia e a noite inteira.

Grand Mama deixa a prefeitura com um sorriso no rosto. Em sua bolsa está o documento fatal que irá depor Galhards e finalmente dar o poder aos seus verdadeiros merecedores. Sim! Agora a influência nipônica estará por todas as partes, entrará em todas as frestas, envolverá todas as almas. Todos se renderão diante do poder indiscutível do Japão!

Décima-sexta Fase
My Net Puppy

Cox, Fye e Miaka caminham pelo mato, seguindo para a cidade. Eles estão sujos, fedorentos, desarrumados e cansados. Foi singular a estadia na floresta. Houveram constrangimentos devido a ausência de banheiros, houveram incontinências urinárias e fecais, houveram insetos sugadores de sangue e um deles até contraiu uma doença.

- Puxa – Começa Miaka. E seu hálito fede tal como uma orgia de gambás. – Como é boa a vida em comunhão com a natureza, ein?

Ninguém responde. Cox ainda não se recuperou completamente da última jaca, então mantém poucas relações sociais com a menina. Fye está mais preocupado com a terrível dor de cabeça e mal-estar que está sentindo.
Por fim, Miaka percebe que esta caminhada está fadada ao silêncio sepulcral e também rende-se a ele.

Se Marmota soubesse que a fiscalização nos limites da cidade pra lá da floresta é nula, ele poderia até pensar em fugir clandestinamente por essa rota.
Porém, ele não sabe. E é por isso que agora está inclinado quarenta e cinco graus jogando World of Warcraft num prédio prestes a ser demolido.

Outlands, a dimensão dos titãs. Criaturas e demônios grotescos e muitas vezes gigantes vagam pelo continente a procura de jogadores azarados em suas montarias aladas. Em Shadowmoon Valley, após o vulcão conhecido como The Hand of Guldan, ergue-se o temível Black Temple. Em outros tempos, os ousados jogadores que se arriscassem a entrar no Black Temple e sobrevivessem a todos os perigos que lá se encontram acabariam por desafiar Illidan, o Lord de Outlands.

Mas Illidan não existe mais.
O abusivamente forte elfo traidor que habitava este Templo foi deposto por Galhards, o adm.
E não houve uma batalha épica ou ao menos uma discussão diplomática para que isso aconteça, como muitos imaginam. Na verdade, Illidan nunca soube o que o atingiu.
Sem nem ao menos estar logado no jogo, Galhards abriu a programação base do WoW e, após algumas linhas de programação editada, Illidan era história. Agora o Black Temple é dele. O fato de Galhards ser adm não só da cidade como de todos os jogos que os servidores públicos da mesma sustentam é a sua maior glória. Ele não só se transformou no mais influente nerd da cidade em questões políticas, como em questões morais também. No mundo digital, que corresponde a 50% da vida dos habitantes, ele é Deus.
Inclusive, Galhards trocou a foto de Illidan da tela de carregamento do jogo por uma sua, só de sacanagem.

Neste momento ele está numa batalha intensa contra um poderoso druida. O oponente desce-lhe um forte golpe vertical com o cajado, mas ele defende com seu escudo recém-adquirido, empurrando-o para trás em seguida.
O druida rapidamente se recompõe e transforma-se num gato, o que lhe permite desaparecer nas sombras.

Galhards guarda nas costas o seu escudo e, após um comando digitado rapidamente, materializa-se em suas mãos uma espada.

- Aparece seu noob! – É a mensagem que ele manda. Mas o programa de intimidação verbal criado por ele automaticamente converteu a frase para “Surja das sombras, grande insolente!”

Admirado pelo fato do adm conseguir digitar o comando para criar a espada e aquela enorme frase em tão pouco tempo, o druida ataca-o por trás com uma poderosa mordida.
O medidor de vida do adm diminui em 0,1%.
Com uma espadada certeira, o druida vai ao chão totalmente derrotado.

- Droga! Vc eh mto poderoso!
- Hahaha! Contenha suas lamúrias, perdedor. SUA ALMA É MINHA! – Galhards digitou “lol looser. OWNED1”

Com um comando simples, porém mortal, Galhards deleta o personagem do jogador para todo o sempre. Seu corpo então desaparece literalmente de um segundo pro outro.
Todo o esforço do rapaz jogando horas e horas seguidas para se tornar um poderoso druida jogados no lixo com um comando tão simples como “/delete character xxx”.
É uma pena, mas faz tudo parte do trato. Galhards fica aqui, no terraço do Dark Temple, esperando pacientemente até surgir um jogador que se sinta preparado para derrotá-lo.
Eles nunca conseguem.
Ainda bem, pois o vencedor ganharia um pacto de honra com ele. Um débito que ele teoricamente seria obrigado a pagar. Por outro lado, os perdedores têm seus personagens deletados e devem começar tudo de novo.
Entediado, Galhards faz o Sol nascer, transformando em dia o céu do jogo inteiro.
Então ele materializa a sua frente um grupo de dançarinas draenei nuas e se senta, apreciando-as. Em qualquer outra cidade isso seria deplorável. Mas aqui ele é o Todo-Poderoso e tudo pode.

No pé do vulcãoThe Hand of Guldan, Marmota, Pirado e Amorim estão conversando.

- ele tá ali, no teto do temple. – Diz Amorim, o guerreiro assassino.
- Então vamo matar ele logo. – Diz Marmota, o paladino sanguinário.
- calma cara... a gente nao ta falando de um chefao qualquer. esse e o adm. ele mata a gente digitando /kill. – Diz Pirado, o sacerdote das trevas. – eu nem sei como a gente vai machucar ele.
- relaxa, véio. – Tranquiliza Amorim. – eu tô com a Tróia. eu mato qualquer coisa.

Amorim não tem o costume de utilizar-se de letras maiúsculas para digitar, mas ele faz questão de caprichar ao pronunciar o nome da espada.
Tróia.
Tróia é a cidade-estado lendária que, como diz o mito, foi capturada pelos gregos através de um golpe extremamente matuto e sagaz. De acordo com a lenda, eles ofereceram uma enorme escultura de um cavalo para a cidade como forma de presente de rendição. Os troianos puxaram o cavalo para dentro dos limites de Tróia e, durante a noite, guerreiros gregos saíram de dentro da estátua e abriram os portões para que o exército invadisse-a.
Por esse motivo o programa Trojan Horse ganhou este nome. A artimanha moderna funciona como a lenda do Cavalo. O programa vem acoplado a outro qualquer e, quando o usuário o executa, ele automaticamente manda o seu ID para o infrator em seu próprio computador, abrindo assim suas portas para a invasão. O Trojan Horse é muito simples de ser usado, podendo ser encontrado em vários programas e modos de disseminação diferentes. Um deles é acoplado a arquivos pornográficos. Coisa que Amorim tem de monte.

Boa porcentagem dos muitos vídeos pornôs que Amorim puxa para seu computador é recheada de vírus e trojans, o que o levou a assinar o melhor esquema de proteção anti-vírus do mercado para não ter que trocar de computador toda semana.
Porém, nenhum anti-vírus é perfeito. Há sempre um ou outro programa de intenções malignas que burla o sistema, caindo direto na máquina do Amorim. E foram três em especial que culminaram em sua invencibilidade on-line.
Um deles é o RPGChaosMaker, vírus criado especialmente para jogos on-line. Ele possui uma versão mãe infiltrada nos servidores públicos da cidade, para a qual ele envia os dados das contas de jogo da vítima. Em posse destes dados, a versão mãe invade os personagens do jogador e reduz todos os seus atributos em proporções catastróficas, deixando-o injogável.
O outro é o FileMixer, um vírus malicioso auto-multiplicável de intenções puramente cômicas. Tudo o que o FileMixer faz é mudar totalmente os diretórios de destino de diversos programas, causando o terror e a desorganização em qualquer doce lar.
E, por fim, um Trojan Horse, o único que o conecta diretamente a uma outra pessoa doida para descobrir seus segredos mais sórdidos e usá-los contra ele.

Um dia, Amorim resolveu deixar tocando sua nova aquisição pornô enquanto jogava. Naquele dia ele jogou de tudo, variando entre Mu, seu preferido, a World of Warcraft, cuja aceitação é geral na cidade inteira.
Enquanto jogava, o seu vídeo pornô ativou um Trojan Horse, conectando-o diretamente a uma garota nerd, não-otaku, na região mais underground da cidade.
Ao mesmo tempo, o RPGChaosMaker capturava todas as suas senhas dos jogos que ele entrava e mandava-as para a versão mãe, sem saber que o FileMixer estava pegando uma carona com todas essas informações.
Além de uma infinidade de pornografias que traumatizariam a vida desta garota para sempre, ela acabou encontrando a interface da versão mãe do RPGChaosMaker. O que ela viu foi um programa que ela não fazia idéia da utilidade reduzindo vários conjuntos de número em vários patamares.
Sua linha de pensamento ao ver isso foi simples:
”Ele tem um programa que reduz números. Vou atrapalhar completamente sua vida elevando todos esses números.”
Ela não sabia que, ao fazer isso, estava convertendo a quantias indecentemente altas os níveis de Força, Agilidade, Inteligência, Resistência e vários oturos atributos dos personagens de Amorim. O que aconteceria agora é que Amorim teria um personagem totalmente fora de padrão que rapidamente chamaria a atenção dos GMs e culminaria na sua expulsão injusta de todos os jogos que participa.
Porém, FileMixer estava lá.
Dentro dos servidores municipais, dentro das cópias da versão mãe do RPGChaosMaker e dentro das contas do Amorim, o FileMixer fez a única coisa que ele é capaz de fazer. Mudou tudo.
Toda a força, agilidade, resistência e o escambal a quatro que deveriam ser direcionadas para os personagens de Amorim foram direcionadas para a pasta mais longe, a mais aleatória (seguindo o padrão pré-definido de aleatoriedade do vírus) e mais conveniente possível. Uma espada. E o nome, também gerado a partir da junção totalmente randômica de caracteres, coincidentemente foi “Tróia”.

No dia seguinte Amorim descobriria que todos os seus personagens em todos os jogos que jogava agora possuíam uma espada chamada Tróia, capaz de aniquilar toda e qualquer criatura controlada ou não-controlada por uma forma viva que cruzasse seu caminho. Ele a usaria para subjulgar o poder. Ou “foder tudo tudo”, como costuma dizer.

Após aniquilar tantos GMs na total impunidade (já que a conta dele estava limpa e ninguém encontrou motivos para baní-lo), Amorim ganhou fama. Ele passou a ser conhecido como o PK (Player Killer) lendário. E é por isso que o Justiceiro sabia exatamente de quem Marmota deveria pedir ajuda.

Como o Justiceiro e Marmota se conheceram, será contado em outra hora.

Galhards já se cansou do show das draeneis e as fez desaparecer. Agora ele passava o tempo pulando de um lado pro outro quando avistou algo que chamou sua atenção. Com sua visão de alcance infinito, ele vê a ponta de um rabo de fênix negra por trás de uma pedra. Engraçado, só GMs tem o direito de ter essa fênix.

- amorim, guarda a phoenix! ele pode ver.
- ah, lol! foi mal, véio. – Amorim então faz a Phoenix desaparecer novamente. – mas se a gente não vai voando, como é que a gente vai chegar nele ali em cimão?
- Vamo entrar no Templo. – Diz Marmota.

E então eles começam a caminhada por terreno aberto até o Templo.

Galhards vê isso e fica satisfeito.

- QUEM SÃO OS INSOLENTES QUE OUSAM VIR EM MINHA DIREÇÃO? – Ele grita. E seu grito pode ser ouvido por todo o continente.

- Lol, fodeu.

- YOU SHALL SUFFER. – Ele grita novamente.

E então, como se a fúria do inferno abatesse sobre eles, o chão começa a se abrir em vários pontos em seu caminho. Ácido brota das fendas esguichando e liberando verdadeiras torres de fumaça.
Pirado usa sua habilidade de andar sobre a água. Ele espera que sirva para ácido corrosivo também.
Marmota ativa a aura da imortalidade, tornando-o invulnerável por certo período de tempo.
Amorim não faz nada. Ele pisa sobre o ácido ignorando a perca de pontos de vida e continua correndo, impassível.

Galhards vê isso e fica satisfeito.

Ele então levanta da cadeira de seu computador e caminha até uma caixa de metal no canto do escritório. Ele digita a senha e ela se abre.
Ali dentro está a mais nova revolução em tecnologia de entretenimento. O “My Net Puppy”, um cachorro robótico movido a conexão de internet.
Seus olhos se ascendem, sua cabeça se levanta lentamente.

- Quem é o cachorrão do papai? Ein, quem é?

O cachorro late e sai correndo da caixa, saltitando de um lado pro outro. Enquanto isso, seus motores são movidos pela energia captada pela internet wireless vinda do computador administrativo de Galhards, que usa a mesma rede dos servidores públicos.
O uso enorme da banda faz a conexão da cidade inteira ficar ligeiramente mais lenta, mas a diferença é quase nula.

Pirado, enquanto corre, pensa ter notado vagamente que uma nuvem no céu foi acometida por um pequeno atraso em relação as outras, e isso o preocupa.

- corram! ele ta começando o lag!

Lag se trata do terror de todo jogador de jogos on-line. É quando a sua conexão de algum modo se torna atrasada em relação a conexão do servidor do jogo, ou algo assim. O que acontece é que o jogo inteiro passa a dar pequenas travadas ou atrasos maiores para realizar ações, as vezes culminando na total impossibilidade de continuar jogando.

Galhards começa a treinar os comandos que vem ensinando para o Net Puppy.

- Dá a pata. – O cachorro obedece. – Muito bem! Agora fica de pé. Isso!

A cada comando, ele olha com o canto do olho para a tela do computador. O lag começa a aumentar razoavelmente.

Marmota repara que suas passadas não são mais tão constantes. De certo modo, é como se suas pernas já não fossem tão simétricas no movimento de andar.
O Templo está mais perto.

Terríveis monstros e criaturas estão empoleirados em seus muros e portal de entrada, prontos para dilacerar qualquer um que tente entrar. Mas isso não assusta esses jogadores.

Amorim saca Tróia, sua espada. E percebe que o brilho que ela costuma emanar está mais seco, mais sólido. Até não tão brilhoso. Isso o preocupa.

- corre mané, corre!

Galhards está se preparando para o grand finalle. Ele está na sacada admnistrativa da prefeitura, olhando para a rua. Um caminhão de lixo passa. Uma velhinha caminhando calmamente. Um carro, dois carros. Virando a esquina, lá atrás, vem vindo um delinqüente em alta velocidade. Perfeito.

- Pega, rapaz.

O cachorro pula do segundo andar, já ativando seus motores secundários e amortecedores hidráulicos.

Agora eles estão muito perto, mas a sua velocidade começa a diminuir progressivamente. Pirado lança magias de aumento de agilidade em seus companheiros. A cada vez que ele pressiona o comando, leva alguns segundos para a habilidade que deveria ser instantânea surtir efeito.

Uma besta maligna salta na direção dele. Amorim a corta no meio com um único golpe. Um golpe quadro a quadro, como num filme antigo.

O cachorro cai no chão, totalmente seguro pelos seus amortecedores hidráulicos 4x4.
Elevando a potência dos motores ao máximo, ele acelera atrás do carro.
O nerd abestado olha no retrovisor e fica maravilhado com o robô que o persegue. Ele acha a brincadeira excitante e acelera mais.

O cachorro armazena energia para o seu latido sônico de alta frequência.

Demônios saltam de seus poleiros para voar em direção aos jogadores. Suas asas possuem envergadura grotesca que nota-se enquanto se esticam.

A aura de invulnerabilidade de Marmota acaba. Ele vê o que deveria ter desaparecimento instantâneo sumindo lentamente a sua frente. Sua barreira. Agora ele começa a perder vida progressivamente.
A barra de energia de Amorim está pela metade. Ele deve aguentar tranquilamente o resto da distância, a não ser que eles travem sobre o ácido.

Pirado está ciente da vida de Amorim, e isso é o que mais lhe preocupa também.

De repente, tudo para. Os demônios travam no ar, com suas carrancas escancaradas. O ácido esguichando trava também. Cada gota se torna um floco imóvel.
Pirado para. Amorim para. Marmota para.
O único som que se escuta é a gravação do vento passando por entre as pedras.

O latido de alta frequência é incaptável ao ouvido humano, mas fatal para vidros e materiais frágeis.
Os óculos da velhinha racham na sua cara. Ela repara que será um problema jogar PangYa agora, seu golfe online predileto.

As janelas e retrovisores do carro estouram. Agora o cara não conseguirá mais ver seu perseguidor. Muito engenhoso, ele pensa.
Ele começa a costurar entre os carros, cantando pneu. Então uma viatura de GMs escondida sai de um beco para perseguí-lo, ligando as sirenes.

O cachorro incrivelmente rápido acompanha a viatura. Ele late para os GMs e pula sobre o carro. Assim economizará energia durante um período.

Tudo volta a funcionar. Mas durante o tempo travado o jogo ainda computou o contato de Amorim com o ácido, reduzindo sua barra de energia a quase zero.
Pirado, preocupado, resolve que vale a pena parar para carregar uma magia de cura. Assim, ele fica pra trás.

Os demônios caem sobre Amorim, o mais debilitado dos três. Ele luta bravamente. Mas mesmo sua espada aniquiladora não é garantia total contra um grupo grande de inimigos.
Marmota chega para ajudar, espalhando justiça com uma fúria única.

Amorim é curado. Sua vida volta para quase o nível máximo novamente.

Todos os demônios são derrotados e Amorim e Marmota voltam a correr. Falta pouco agora.

Então, tudo volta a correr em quadro a quadro. O tempo não é mais linear, mas em zigue-zague.
Cada vez que o pé alcança o chão, uma nova vitória.
Pirado leva dez segundos para saltar sobre uma fenda.

O cachorro salta da viatura para o chão, ligando novamente seus motores secundários. Ele focaliza o alvo a frente e ativa os sensores de radar.

Galhards já perdeu de vista caça e caçador, e volta para o computador.

- Hahaha! Eu os desafio a proseguir! – Ele digita “Lol, agora eu quero ver.”

A um comando do adm, a porta do Templo começa a se fechar lentamente. Devido ao lag, mais lentamente ainda.

Amorim e Marmota já estavam muito perto, e saltam para dentro.
Pirado corre contra o lag e contra o tempo. Ele vê a porta se fechando e tenta acelerar o passo.

Net Puppy abocanha a roda do carro quando finalmente o alcança, estourando assim o pneu. O carro gira e capota, parando de cabeça-pra-baixo. Quando os GMs chegam, o infrator está se entregando, maravilhado pela tecnologia utilizada pela justiça de Super World. Enquanto isso, Net Puppy volta saltitante para os braços de seu dono.

O lag acaba. A porta aumenta a velocidade com que fecha-se. Pirado pula e Amorim e Marmota o puxam pra dentro. No momento seguinte a porta bate, trancando-os no Black Temple.

Décima-sétima Fase
O Fatality do Baraka e a rebelião dos presos

- Caras... Temos um problema. – Diz Alejandro, olhando pela janela.
- Fala. – Marmota diz isso, mas na verdade ele não está prestando atenção. Ele acabou de entrar no Black Temple, afinal.

Alejandro franze as sobrancelhas, como se isso de alguma forma servisse para ajudá-lo a prestar mais atenção no que estão anunciando lá embaixo. Seja o que for, há vários oficiais da justiça e um grande veículo equipado com uma bola de chumbo pendente, e isso não é agradável.

- Eu acho que eles vão demolir o prédio.
- Sério? – Diz Gatts, também olhando.
- Ok. – O subconsciente de Marmota tirou da cartola uma de suas respostas automáticas para quando ele está absorto no computador. O “Ok” está na lista mental bem depois de “Num instante” e antes de “Jajá, perae”.

No jogo, o trio está avançando pelos corredores do Dark Temple. O que deveria ser uma masmorra escura e virulenta foi redecorado pelo admin. Agora tudo está com um visual moderno e clean, numa mistura de branco e verde claro com luzes fluorescentes e quadros contemporâneos nas paredes. Galhards finge que gosta de arte para impressionar os outros, mas na verdade ele não entende a maioria dos quadros que programou para estarem ali.

- Muito bem, eu admito que estou impressionado. – Eles recebem uma mensagem do admin. – Eu não imaginava que vocês sequer conseguissem entrar. Agora tudo o que vocês tem de fazer é sobreviver a onda de Dark Knights e poderão subir até aqui e lutar comigo.

- Ok, isso vai ser fácil. – Diz Marmota, o paladino.
- pera, cara. a galera aqui na casa do amorim tah falando que os gms vao demolir o predio. – Alerta Pirado.

No mundo real, Marmota acorda do seu transe nerd e se toca no que acabou de ouvir e ler.

- Eles disseram que vão demolir o prédio?
- É, cara! A gente tem que sair logo daqui. Acho que eu ouvi eles gritando que vão demolir em quinze minutos. – Diz Gatts com seu sotaque carioca com grande influência do metal.
- Puta merda, a gente tem que terminar logo com isso pra poder sair daqui. – Conclui Marmota.

Pirado esperava que ele desistisse do plano, mas essa solução arriscada parece ser emocionante. E ele não é um homem que deixa um companheiro na mão.

Na sala, Dok acabou de chegar no apartamento e leu a conversa de Pirado e Marmota pela tela do computador do Amorim.

- Puta merda, fodeu. – Ele é um homem sensato.

No andar térreo, do outro lado da rua, Fê, o trator latino, está sentado esperando pacientemente o grande momento da demolição.
Após assistir a cena de um delinqüente saltando pela janela em desespero só para se entregar, sua moral está pra lá de Bagdá.
Ele se lembra de como as coisas funcionavam com mais burocracia e frescura no mundo lá fora. Fica feliz por trabalhar numa cidade que é pá-pum, tiro e queda, lei da selva, olho por olho, zapt zupt, toma lá, dá cá.

No jogo World of Warcraft, Amorim, Pirado e Marmota podem escutar o som da horda de Dark Knights vindo detrás da curva no fim do corredor. É de fazer pular o coração.

- caras. – Amorim de repente se toca de uma coisa.
- Oi?
- ele disse dark knights?
- Sim. Seja lá o que forem, com a sua espada vai ser fácil.
- eu sei, véi. mas tipo... eu sei o que são dark knights.
- puta que pariu – Diz Pirado, que já entendeu a situação.
- Pera, o que é que eu tô perdendo?
- os dark knights são a nova classe de super hero que é lançada só na versão “the wrath of the lich-king”! a nossa versão ainda é a “the burning crusade”, véi. quando esses caras aparecerem na nossa tela, o jogo vai travar!
- PUTA QUE PARIU – Agora Marmota também entende a situação. – CORRE!

Com uma machadada recheada de justiça divina, ele destrói uma porta lateral por onde os três passam. A porta, quando ainda era uma porta, dava para um cômodo inútil com dois baús e paredes recheadas de quadros famosos.
Os Dark Knights ainda podem ser ouvidos. Provavelmente já fizeram a curva do corredor e estão vindo na direção do grupo.

- e agora, véi!? e agora?! – Amorim está entrando em desespero.
- Sei lá, porra. O que você sabe fazer?
- eu curo. – Diz Pirado.
- eu bato. – Diz Amorim.
- Tá, tá... Vamo pensar em alguma coisa.
- rápido!

Os três começam a pensar, mas é difícil em tal situação tensa.

- esquece, nao vai dar tempo – Diz Pirado.
- Você não pode desistir agora, velho! – Marmota sabe que ele pode, mas quer botar um pouco de pressão.
- quem disse que eu vou desistir? eu vou dar mais tempo pra voces.

Como um ato de despedida, ele buffa (do verbo buffar, que significa tornar temporariamente mais forte. Habilidade comum de sacerdotes) seus amigos.

- aconteca o que acontecer – Ele diz sem usar pontuação alguma. – nao olhem pra porta.
- Valeu, velho. – Agradece Marms.

No pique, Pirado sai da sala correndo e, sem virar a câmera de jogo para os Dark Knights em momento algum, corre na direção contrária.
A horda alucinada engole a isca e corre atrás dele, ignorando a sala lateral onde estão Marms e Amorim.
Pirado corre até o fim do corredor e agilmente chuta o estabilizador do computador, causando o seu desligamento e em consequência desconectando-se do jogo.

Com um alvo a menos, a horda volta pelo corredor e entra na sala a procura dos outros dois, mas chegam atrasados. A sala está vazia.

Pirado se levanta do computador, espreguiça-se e observa a situação. Sahra já não está mais inconsciente nem com aquela cara abatida. Parece que ela já foi ao banheiro e tomou um lanche. Ela está debruçada na janela gritando para os GMs, tentando dizer que ainda há gente no prédio. Porém ela parece não ser ouvida ou, quem sabe, ser deliberadamente ignorada.
O GM com o megafone anuncia tranquilamente.
- Faltam 10 minutos para a destruição da Pica Torta!
Na sala, Dok ri alto.

- o meu plano de entrar nos baús era mais garantido, mas o seu de quebrar o teto foi mesmo melhor. – Amorim admite.
- Pra ser sincero eu não sabia se ia dar certo. Nunca fiz isso antes.
- não era pra dar mesmo. os cenários destrutíveis só vão ser implementados na mesma expansão dos dark knights, “the wrath of the lich-king”. mas pelo jeito o admin safadão adiantou tudo por aqui.
- Né?

Eles caminham pelos corredores desertos até o que parece ser o centro do segundo andar da estrutura.

- Pelo que eu percebi, o terraço fica logo acima de nossas cabeças. E é lá que o admin tá agora.
- beleza. pro nosso ataque funcionar, eu preciso acertar ele com a Tróia num golpe só antes que ele perceba. senão ele pode resolver me apagar e foder tudo.
- Cara, desculpa te colocar no meio dessa. Eu sei como deve ser ruim ser deletado agora.
- o foda é perder a Tróia, né. mas beleza, vamo que vamo!

Na vida real, o trator da bola de chumbo começa a ligar os motores.

- Aff, nem vem! Me ensina logo como dá esse fatality! Você tinha dito que não sabia, sua vaca!
- HAHAHAHAHA, jamais confie no Baraka.
- Ensina! Ensinaensinaensinaensina!
- HAHAHAHA, never!

As irmãs Nina e Sammy foram designadas pela sociedade oculta das mulheres não-otaku de Super World para montar guarda na entrada oculta da comunidade e ludibriar qualquer possível bisbilhoteiro, porém elas preferem passar o tempo jogando Playstation 2.

- Gente. – Diz Nana, a terceira e última menina designada para a mesma função. – Sabe essas orelhinhas de otaku que eles deram pra gente usar?
- Sim. – Diz Sammy, a mais velha das duas irmãs. E ela tem aquela incrível capacidade feminina de falar uma frase monossilábica com o tom exato que expressa simpatia e algo como “Vamos, prossiga” ao mesmo tempo.
- Então. Eu enjoei delas.
- Aaaah, mas eu acho tão fofas! – Diz Nina, a irmã mais nova. – Além disso, elas servem pra gente dizer que veio de Libertação se alguém desconfiar de qualquer coisa.
- Eu sei. As vezes eu acho elas fofas também. – Nana é a mais nova das três, mas não tem qualquer parentesco com as outras duas. – Mas sei lá, já enjoei da minha. Nenhuma de vocês quer trocar comigo?
- Pode ser. Vem cá. – Sammy troca de orelha com Nana e ao mesmo tempo também troca de assunto. – E a Sarinha, ein? Ela já não devia ter voltado?
- Sei não, viu... Aquele tal de Preto parecia muito safado. – Diz Nina.
- Olha quem fala.
- Hahaha, eu tô falando sério. – Nina tem ciência de sua perversão absoluta, mas ela está mesmo preocupada com Sahra. – Tipo, eu não confio muito naquele cara. De tanta gente lá fora pra confiar nosso esconderijo, foram escolher o que tinha mais cara de safado?
- Calma. Não é como se ele fosse seqüestrar a Sahra ou algo assim...
- Num sei, num sei... Não acho que aquele cara é sequer capaz de guardar nosso segredo num momento de pressão.

Preto, devido a sua total capacidade de guardar o segredo das meninas num momento de pressão, está nesse momento na traseira lotada de um camburão de GMs sendo levado para a delegacia.

- Puta sacanagem os caras demolirem a Pica Torta, né cara? – Alguém está puxando assunto entre os algemados.
- Pode crer. Aquilo é puta marco histórico da cidade, tá ligado? E os cara vai e faz isso. – Preto conversa.
- Vocês tão preocupados com a Pica? E a gente aqui, caralho? – Diz outro. – Não sei vocês, mas eu vou me foder na mão desses cara.
- Putz...
- É, eu também... – Diz Preto.

O camburão para. Do lado de fora dá pra ouvir tiros e muita gritaria.

- Parados! Eu atiro em vocês, seus malditos!
- UUUHHL!
- Sai, sai, sai!
- Porra, segura o lagarto! O lagarto!

Súbito o som de algo muito pesado e metálico caindo no chão.
Pelo barulho seguinte, presume-se que os GMs acabam de sair do camburão e bater as portas atrás de si.

- Viraram um camburão! – Preto está olhando por um dos buraquinhos de entrada de ar.
- Sério?
- Certeza, mano! Vamo virar também! – Ele atiça.

Encorajados, todos os algemados balançam de um lado a outro. Aos poucos o pesado camburão começa a balançar suavemente.

- Não para! Não para!

Mais tiros lá fora. Pessoas correndo, gente gritando.
O camburão tomba.

Com vários chutes, a porta já danificada cede.

Preto sai logo atrás de todos os presos. Ele para um segundo para analisar a situação.
Eles estão na rua em frente a delegacia. Meia dúzia de GMs e alguns guardas rasos tentam inutilmente conter dúzias de capturados fugindo.
Há três camburões contando com o seu. Dois tombados, um simplesmente com a porta escancarada.
Aproveitando a confusão, assim como todos os outros, ele corre.

Lizard, enquanto ainda estava na delegacia, conseguiu tirar um tempo para despistar os GMs e encontrar suas machadinhas apreendidas. Depois, quando saia correndo a toda da delegacia, deparou-se com três camburões chegando enfileirados.
Dois guardas já familiarizados com ele estavam na porta e correram atrás assim que o viram.

- Pare, maldito! – Grita Blaze, que já arranjou certa rivalidade com o lagarto.

Para despistá-los e dar algum trabalho, ele correu até a traseira de um camburão e abriu a porta a machadadas, liberando os presos.
Estes logo pegaram o embalo do plano e correram até o outro camburão, virando-o e libertando os outros.
Os GMs sairam dos camburões sem saber por onde começar.
Na confusão, Lizard correu em frenesi.

Danilo ficou para ajudar a apreender ao menos alguns foragidos.
Blaze ignorou todo o circo criado e correu atrás de Lizard com a arma em punho.

É nessa situação que eles estão agora.

- Pare! Pare ou eu atiro!
- Não quer um chá também, gracinha? – Lizard nunca perde o prazer da ironia.

Um tiro. Blaze erra.

- Pare!

Outro tiro. Erra de novo. Blaze decide que vale a pena acelerar o passo.
Ele é incrivelmente rápido, a despeito de seu joelho machucado. Por um problema antigo, o seu joelho dói com freqüência. Aquele tipo de coisa que faz o médico recomendar que o paciente não corra jamais.
Como é de se presumir, Blaze não segue essa recomendação a risca. Seu joelho já está latejando.
Mesmo com a dor quase insuportável ele é incrivelmente veloz.
Aliás, ele sabe que se não fosse por esse joelho ele poderia ser até um recordista mundial.

- Cinco minutos! É hoje que a Pica cai, galera! – Anuncia o GM no megafone.

Fê nem imagina que três camburões foram abertos em frente a delegacia e deixaram escapar vários presos. Para ele a operação está ocorrendo de forma impecável até agora, e ele pretende continuar assim.
Aliás, ele acaba de perceber algo que poderia ter sido terrível se não evitado.

- Ei Buda. Alguém se certificou de que não há ninguém vivendo naquela casinha? Provavelmente o prédio vai tombar por cima dela, aí não vai sobrar nada.
- É, eu acho que ninguém lembrou disso.
- Mande evacuarem pessoalmente aquele lugar antes da demolição, sim?
- Sim senhor!

Justo quando Nina achava que ia aprender o Fatality do Baraka, quatro GMs apressados invadem a casa derrubando a porta e gritando histéricamente.

- Por favor, abandonem a área imediatamente! – A educação é redundante, visto que eles estão empurrando as três meninas para fora.

No processo, um dos GMs acidentalmente pisa no vídeo-game, destruindo-o.

- NÃO! – Aquilo é doloroso para Nina ver.
- Acalme-se, Nina. – Sammy é madura o bastante para saber que não é o momento ideal para armar um escândalo. Ela vê nos olhos de ambas as meninas que elas estão perdidas. Ela também está, só que disfarça melhor.

- O que está acontecendo? – Sammy pergunta enquanto é empurrada pelo braço indelicadamente.
- O prédio “La Picadilly”, inclinado logo acima de sua residência, será tombado em menos de cinco minutos. É imprescindível que abandonem o local. Não há mais ninguém lá?

Nina e Nana esperam pela resposta de Sammy. Elas não saberiam o que dizer no lugar dela.

- Não. Não há ninguém.

No mundo virtual, Amorim sobe as escadas para o terraço do Black Temple, onde desafiará Galhards, o imbatível GM.

- Hahaha! Onde estão os outros dois? Por acaso vocês acham que podem me pegar numa armadilha? – Diz o GM, já digitando um comando que o deixa com a melhor armadura disponível no jogo.

Amorim saca o machado e, tenso, se prepara para atacar.

- O que está esperando? Vamos, eu não tenho o ano todo!

O cavaleiro assassino corre na direção do admin. É um ataque frontal direto sem qualquer firula. Um jogador experiente nunca faria isso contra um oponente muito mais forte. E é justamente esse o caso.

- Hahaha... Hahahaha.... HAHAHAHAHA! – Galhards ri da ingenuidade do guerreiro. Na verdade ele digitou apenas “rofl”, o que dá no mesmo.

Ele junta ambas as mãos a frente e, após carregar a magia durante apenas 0.01 segundos, atira no oponente um feixe de magia luminosa pura.

A armadura negra de Amorim sofre o ataque em cheio. É um acerto crítico. Seu medidor de energia imediatamente cai a zero e o seu personagem cai no chão.

Décima-oitava Fase
Tiro e queda

O GM se aproxima triunfante de seu desafiador tombado.

- Era isso? Todo o trabalho que você me deu era só pra isso? O poderoso PK lendário não conseguiu nem encostar em mim? Quão patético!

Ele começa a digitar o comando que deletará o personagem do Amorim para sempre, mas é aniquilado antes que possa apertar o Enter e processar o comando.

Cortando concreto digital como papel, a enorme lâmina de Tróia, no momento manipulada por Marmota, passa pelo chão sob os pés de Galhards e o pega em cheio, cortando-o em dois.

Ele tomba derrotado. Os balões de mensagem ainda podem ser vistos sobre a sua cabeça.

- AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAH NÃO CREIO! VOXCÊ ME MATYOU, SEU LAZARENMTO! – Com a morte do admin, o programa de opressão moral através da manipulação de frases é desativado. – MAS MADA PODE SALVAR SEU AMIGO! ELE PERDEU NUM DUELO JSUTO E SERÁ DELETADO CMO TODO MNDO!

De fato, o personagem de Amorim some para todo o sempre.

- Bom, pelo menos a Tróia tá com você! – Grita Amorim do computador da sala.

- Agora eu tenho um débito de honra com vc. Vai, pede o q vc quiser. – Diz o corpo disforme do admin.

Marmota finalmente irá cumprir com seu sonho. Após tanto trabalho e tantos sacrifícios, ele poderá se livrar dessa cidade nojenta e sem mulheres e partir rumo a um mundo mais normal!

“Sair de Super..” ele começa a digitar.

O som de toneladas de chumbo batendo contra apartamentos interrompe sua concentração.
Todo o prédio treme perigosamente. O computador, assim como todos os equipamentos elétricos e encanamentos do prédio, para de funcionar.

Sara dá um grito de terror quanto vê pela janela o primeiro golpe da bola de chumbo no prédio. Em seguida ela retoma a racionalidade, ou parte dela, e começa a gritar em fúria:

- Seus filhos da puta! Ainda tem gente aqui! Vocês vão matar todo mundo, seus viados!

Ela grita bem alto e tem certeza que eles estão ouvindo.

Lá embaixo, os GMs ouvem.
- Capitão.. Ainda tem gente lá em cima. Eles tão gritando pra gente.
- Bom, eles tiveram seu tempo.
- Puxa, bem lembrado.

A moral de um GM geralmente possui um limite muito baixo. Só o bastante para que ele aceite trabalhar como o mantenedor da lei, geralmente.

- Seus filhos de uma puta prenha! – Ela se esguela.
- Sarinha, eles não tão ouvindo. Vamo bora daqui!
Alejandro, com a ajuda de Gatts, tira ela da janela puxando-a pelo braço.

Amorim rapidamente recolhe alguns objetos de valor e dinheiro, enquanto Dok abre a porta para todos saírem.
Em instantes, todos estão correndo desengonçadamente escada abaixo quando toda a estrutura treme a um segundo golpe da bola de chumbo.

Enquanto descem e tropeçam, Dok tenta estimar quais as chances de conseguirem sair vivos do prédio. Eles já estão descendo o sétimo andar e o edifício tomou dois golpes sem tombar. O globo de chumbo deve ter umas...
Então ele desiste quando lembra que o prédio é 45º inclinado e isso em si é improvável o bastante para acabar com qualquer expectativa.
Aí, como se fosse possível, ele passa a descer mais rápido ainda.

Sarinha começa a lembrar as desvantagens de se ter seios com mais de três quilos cada.

Alejandro percebe cada vez mais as maravilhas dos quilos de peito que ela tem. Visto que vai morrer, ele tenta se certificar de que a última cena que ele vai ver seja bonita.

Gatts se pergunta o que diabos ele está fazendo nesse lugar, pra começo de conversa. Ele se lembra de seus conterrâneos cariocas e se pergunta por onde eles podem estar andando.

Amorim apenas corre e sua como um condenado. Um telepata perceberia que ele não está pensando em absolutamente nada, por incrível que pareça.

Pirado se diverte com a situação toda, mas gostaria de ter morrido de outro jeito.

Na pressa, ninguém notou que Marms não está com eles.

Sentado em total estado de choque em frente ao monitor apagado, ele ainda está processando o que acabou de acontecer.

- ...

Quando termina de processar, ele foca toda a sua fúria e revolta para com o mundo em seu punho direito e desfere o melhor soco de sua vida no meio da tela, quebrando-a e machucando um pouco os seus dedos.

- CA-RA-LHO!

Um terceiro golpe no prédio o faz lembrar-se de sua delicada situação de perigo. Convicto de que não há mais tempo de se salvar do modo convencional, ele analisa suas possibilidades olhando pela janela.

Na calçada...

- Caramba, eu fico impressionado na quantidade de golpes que um prédio tem que tomar pra cair.
- Né? Principalmente um desses, já todo inclinado e pá.
- Então... Eu não achei nem que chegaria o dia em que nós teríamos que derrubar. Entende? Eu achei que ele ia cair sozinho.
- Do caralho, ein.
- Aham.

Como crianças, os GMs assistem a demolição. Entre um golpe e outro da bola de chumbo, o silêncio é tenso. A vizinhança toda se aglomera nas janelas observando.
E então, alguém grita do meio da multidão:

- Veja! Ainda tem alguém na janela!
- Oh meu Deus! Ele vai pular!?
- AAAAAH MEU DEUS!
- Olhem ali! O que é aquilo?
- É um pássaro?
- Não, sua anta. Aquilo no chão.
- Onde?
- Ali, ó. Segue meu dedo. Tá vendo? Subindo o prédio pela parede inclinada. Meu, aquilo é foda.
- Ah, minha nossa! É o...
- Eu sei o nome dele, eu sei! Ele é o...

O Justiceiro do Deserto se arrisca subindo correndo o prédio pela parede... Bom, pela única das quatro paredes de um prédio inclinado onde isso seria possível.

- Caramba meu! Você tá vendo aquilo? – Nenhuma resposta. - Fê, você viu?
Fê não responde. Só pela sua feição, Buda já nota que ele viu.
A cara sempre descontraída agora está fechada. O olhar é como o de um caçador, apertado tal os olhos de um falcão.
Fê se levanta.

- O que foi, Fê?
- Pela primeira vez eu estou vendo pessoalmente o procurado Justiceiro do Deserto.
- Sim, mas ele está subindo o prédio que a gente vai demolir. Não tem como pegar o cara agora.
- Eu vou pegá-lo. – Fê diz isso empurrando Buda do seu caminho.
- Você é louco! Com certeza vai morrer!
- Não pare a demolição! – Fê grita enquanto corre em direção ao prédio. – Eu vou trazer ele vivo, prometo!

Marms vê o aglomerado de gente na rua apontando para algo na lateral inclinada do prédio, onde ele não consegue ver. Para tentar enxergar, ele se estica arriscadamente para fora.
O que ele vê é o Justiceiro do Deserto subindo rapidamente pela parede seguido de não muito longe por um GM atlético e amedrontador de longos cabelos cor de assassinato.

Ele se lembra de como conheceu o Justiceiro.
Era uma tarde ensolarada de Domingo em Super World. Uma pequena criança que acabara de acordar caminhava alegremente até a padaria quando é abordada por três corpulentos encrenqueiros drogados e sem nada a perder.

- Quem é o noob agora, pirralho?
- Do que vocês estão falando?
- Vira ele.
- Não! Eu imploro!

Do outro lado da rua, Marms está em uma lan-café tomando café no balcão. Ele não percebeu nada do que acontecia com o garotinho.
O sino de clientela toca quando alguém entra. É um homem encapuzado, que mal se enxerga o rosto. Se existissem justiceiros no deserto, eles seriam como ele.

- Oi Cris. Me vê um pão-de-queijo, um copo de leite e coloca duas horas na minha conta, por favor? – Em momento algum ele repara no garotinho do outro lado da rua.
- Claro, claro!

Marms, contendo-se para não soar desagradável, faz uma pergunta direta:

- Oi. Por que diabos você tá todo coberto com esse Sol lá fora?
- Ah, é porque a minha identidade é secreta. Sabe como é, né. Eu sou um Justiceiro. Justiceiro do Deserto, aliás. – Ele o cumprimenta.
- Prazer, Marmota.

Pronto, foi assim.

Fer saca seu lançador de arpões pessoal da cintura e, sem parar de correr, mira no Justiceiro.

- Atrás! – Grita Marmota, quase caindo da janela.

O Justiceiro vira a tempo de se jogar para o lado, fazendo com que o arpão de quase dois metros acerte um indefeso vaso de flor posicionado numa janela aleatória.
Sem parar a perseguição, Fê pega o arpão com maestria assustadora e, demonstrando uma habilidade sobre-humana, rearma o lançador sem nunca demonstrar qualquer sinal de cansaço.

Quando está chegando perto de Marms, o Justiceiro estica a mão, demonstrando claramente que vai puxá-lo para fora da janela.
Marms acha que vai morrer com o procedimento, mas como a outra alternativa não é nem um pouco diferente, ele estica o braço também.
Ao contrário do que Marms esperava, ao invés de puxá-lo para cima, o Justiceiro salta em queda-livre e o traz consigo.

Fê para, incrédulo.

- Maldito!

Aconteceu. O que Blaze temeu por toda a vida finalmente aconteceu, e justo no único momento em que não podia. O joelho deu pane.
Com um urro de dor, ele capota no asfalto.
Com o rosto queimando no chão quente, ele ouve as passadas do homem-lagarto se distanciando.
Cada...
vez...
mais....
longe.

Ele não sabe quanto tempo ficou ali estirado, totalmente entregue a derrota, até Danilo o levantar.
- Ugh!
- Calma, calma. O que aconteceu aqui, Blaze? – Nesse instante Blaze repara no que diferencia o seu amigo Danilo de todas as outras pessoas. Ele nunca usa a expressão “cara”.
- Eu deixei ele fugir. Ugh...
- E o que houve com a sua perna? Não consegue esticar?
- Ai, ai, ai... Não, para.
- O que ele fez?
- Não foi ele. Esse meu joelho sempre foi meio problemático. Ugh...
- E essa sua cara toda queimada? Nossa, a gente tem que te levar pra um hospital.

Enquanto isso, Lizard já nem sabe mais pra onde está correndo. Ele acha sensato parar um pouco e se esconder num beco para pensar melhor.
A fuga não foi lá perfeita, mas funcionou. E isso basta. O próximo passo é beber alguma coisa e encontrar Fye e a gangue.

Ele ouve um estrondo longínquo. Ao procurar um pouco, ele assiste a distância um prédio caindo. Uma cena estimulante, no mínimo.

Num calçadão apinhado de gente, Grand Mama vê Fye e a gangue a distância. Ele está com a menina e o... Oh, esse não é o homem-jacaré. Parece que ele foi substituído por um magricela de cabelo azulado.

- Yo!

Um magricela nada discreto, por sinal.
Mama desvia o olhar, como se não os conhecesse. Ela para e finge olhar uma vitrine.

Fye dá uma forte e afiada cotovelada em Cox, reprimindo-o pela idiotice. Ele esqueceu de avisá-lo que esse não é um encontro, apenas uma transição de arquivos.
Sem nunca parar de caminhar, eles passam por trás de Mama. Nesse momento Miaka discretamente pega a pasta que estava em sua mão.

- Ah tá. Saquei. – Diz Cox depois, como se devesse alguma satisfação a Fye.

Eles se distanciam de Grand Mama e param num banco de praça logo atrás da imponente estátua de tEddy, o mascote da cidade.
Cox se lembra que foi ali que tudo começou.

- Abre, abre. – Diz Miaka, afobada.
- Calma, eu quero sentir cada gota... – Fye usa uma metáfora inteligente, comparando a vitória a um suquinho de limão na praia.

E então Cox se dá conta da grandiosidade do plano. Ele vê todas as peças se encaixando diante dos seus olhos e repara no tamanho da furada em que foi metido.
A sua frente, nas mãos de um Fye orgulhoso, estão diversas fotos tiradas em ângulos diferentes envolvendo um homem pelado e um míssil nuclear.